Sérgio C. Buarque

No pronunciamento logo após as eleições, o presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou que a política externa do Brasil não seria mais contaminada pelo viés ideológico, numa crítica direta aos governos do PT que orientavam as relações internacionais com base na afinidade (ou antipatia) política e ideológica. De fato, nos 16 anos de governos petistas, houve uma tendência clara de privilegiar relações e acordos com os governos de perfil ideológico semelhante – Cuba, Venezuela, Bolívia e algumas ditaduras africanas – num tardio e anacrônico terceiromundismo, independente dos interesses estratégicos da Nação. Política externa é uma questão de Estado e não de governo e suas simpatias, não podendo ser contaminada pelo viés ideológico dos governantes de plantão.

No entanto, antes mesmo da escolha do novo ministro das relações exteriores, o presidente eleito sinalizou para duas decisões com forte viés ideológico e uma visão mesquinha e voluntarista das relações internacionais: (1) a transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém; (2) o rompimento de relações diplomáticas com Cuba. Com esta proposta, que parece imitar os arroubos de Donald Trump, o presidente eleito confunde os interesses nacionais com a sua ideologia e, como o PT, rompe com uma tradição de independência diplomática, o que pode custar caro ao Brasil.

Cuba é uma nação soberana que não representa nenhuma agressão política ao Brasil, e que está passando por uma transição difícil de abertura da economia e de distensão das relações políticas internas. Em vez de imitar as agressões do atual governo norte-americano, o Brasil deveria colaborar com Cuba no processo de reestruturação econômica e política. Ou, ao menos, manter uma postura de independência e respeito diplomático, sem o viés ideológico que marcou a guerra fria. O Brasil deve assumir uma posição de liderança cooperativa no continente, evitando a ingerência nos assuntos internos dos outros países, e tomando iniciativas de negociação para a construção da paz e a promoção do desenvolvimento dos nossos vizinhos, incluindo Cuba e Venezuela.

A decisão sobre Jerusalem é mais grave e inaceitável. Símbolo do conflito entre árabes e isralenses, Jerusalém é disputada como cidade santa pelas três religiões que surgiram na região: judaísmo, islamismo e cristianismo. A simples transferência da embaixada brasileira para Jerusalém é uma manifestação clara de alinhamento injustificado com Israel, e constitui uma afronta direta ao mundo árabe. Além disso, o Brasil estaria violando a Resolução 478 do Conselho de Segurança e a recomendação da Assembléia Geral das Nações Unidas que apontam na direção de dois Estados independentes na região. Este claro viés ideológico de Bolsonaro deve criar dificuldades nas relações diplomáticas e comerciais do Brasil com os países árabes e, com certeza, gerar um mal-estar na população brasileira de origem árabe, tão importante quanto a comunidade judaica. Em 2017, o Brasil exportou cerca de US$ 10,10 bilhões para treze países do Oriente Médio, com destaque para a Arábia Saudita, que importou mais de dois bilhões de nossos produtos: carne bovina, frango e produtos industrializados. Com a importação de apenas US$ 352 milhões, Israel está abaixo de seis parceiros comerciais do Brasil na região. O primeiro sinal foi dado pelo Egito, importante importador de produtos brasileiros (importou US$ 1,74 bilhões, em 2017), quando suspendeu, esta semana, a visita programada do Ministro das Relações Exteriores, como um protesto implícito ao anúncio de Bolsonaro.

Pelo visto, o presidente eleito não está contra a existência de um viés ideológico da política externa brasileira. Ele rejeita a ideologia que os governos do PT utilizaram na condução das relações internacionais. Sendo assim, pretende, na verdade, inverter a ideologia, e não recuperar uma tradição da diplomacia brasileira, fundada na independência, na não interferência nos assuntos internos dos outros países, e na cooperação internacional com base nos interesses nacionais. Política externa, vale repetir, deve ser uma política de Estado, que não pode ser contaminada pela ideologia dominante nos governos.