Sérgio C. Buarque

O islamismo não pode ser responsabilizado pela barbárie do Estado Islâmico nem pelo atentado fanático ao Bataclan em Paris, mesmo quando os terroristas sigam preceitos de líderes religiosos de algumas das suas seitas. O cristianismo não pode ser identificado com a histeria da Inquisição que, durante séculos e com a orientação oficial da Igreja (católica mas também protestante), torturou e matou milhares de infiéis in nomini Dei. Da mesma forma, não se pode culpar o marxismo pelos massacres de Stalin e seus seguidores em nome de uma doutrina política.

Na sua origem, as religiões se estruturam em um conjunto de normas e princípios morais ou filosóficos que orientam o comportamento e a convivência social com base na compaixão, na solidariedade e no respeito à vida. Da mesma forma, o marxismo nasceu como uma crítica dura ás mazelas de uma sociedade desigual e injusta e com uma proposta de uma sociedade igualitária. Os princípios éticos das religiões e doutrinas tiveram grande importância na história da incorporação na sociedade dos valores humanistas. Com o tempo, contudo, estas doutrinas religiosas e políticas geraram e justificaram o fanatismo, a intolerância e a violência, como decorrência direta de uma característica comum: cada uma com a sua verdade única e absoluta, com um salvacionismo arrogante e autoritário que condena os que não seguem suas diretrizes e propostas. Assumindo-se como portadores de uma verdade – decorrente do seu Deus ou do determinismo-histórico – islamismo, cristianismo e marxismo – carregam um gérmen de totalitarismo.

O combate à heresia entendida como todo pensamento ou comportamento diferente da doutrina dominante, tem sido a marca destas três vertentes religiosas (o marxismo virou uma religião) que divide a humanidade entre nós e eles, bons e maus. Na perseguição à heresia, estas religiões criaram, em diferentes lugares e momentos da história, um clima de medo e terror muitas vezes traduzido em efetiva perseguição aos hereges. Além de se agrediram mutuamente como porta-vozes da heresia e atacarem as seitas internas, cada uma tentando afirmar sua leitura verdadeira e definitiva das “escrituras” contra todos os “desvios”, manifestam o fanatismo contra todos os que pensam e agem diferentes. A inquisição, as Cruzadas, a Jihad e os Processos de Moscou são símbolos deste terror salvacionista das doutrinas, como agora os atentados em Paris, Beirute e Egito. O Estado Islâmico é dominado por uma seita muçulmano que odeia e ataca as outras seitas que devem ser destruídas pela sua verdade, da mesma forma que o stalinismo tentou destruir o trotskismo, perseguindo o movimento e assassinando todos os grandes líderes da Revolução de Outubro, incluindo Leon Trotsky.

Mas as disputas religiosas ou doutrinárias escondem, quase sempre, interesses e conflitos políticos e territoriais que vão muito além de diferenças na visão de mundo e na interpretação dos livros sagrados. O Estado Islâmico é um movimento fanático de inspiração religiosa que utiliza o fanatismo para atrair e mobilizar milhares de jovens nesta guerra insana e nos atentados desumanos para ocupar territórios da Síria e do Iraque. O ódio aos hereges de todos os matizes tem uma forte carga emocional e mística que alimenta e justifica perante Alá a insana violência dos terroristas. As religiões, é certo, não são, necessariamente, violentas mas têm o gérmen do fanatismo que pode e tem levado, historicamente, à intolerância e à violência como as guerras de Maomé contra os idólatras, as Cruzadas e a Inquisição, os massacres entre seitas cristãs, como a Noite de São Bartolomeu, e os processos de Moscou, explorando o ódio contra adversários e os subterfúgios doutrinários legitimadores da violência fanática.