Helga Hoffmann

Quem sou eu para parabenizar o novo Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro? Pois se sequer votei nele. Mas eu acho que antes de mais nada o Presidente eleito tem que ser cumprimentado, e o primeiro a parabenizá-lo foi Maurício Macri. Ponto para o Presidente argentino.[1]Em seguida é que vem a análise de que governo é este que está se formando e suas propostas. Há dois anos e sete meses uma pesquisa Datafolha, em 6 e 7 abril de 2016, deu a Bolsonaro 8% dos votos (23% Marina, 22% Lula, 9% Alkmin, 8% Ciro). Desde então Bolsonaro percorreu o Brasil, competente apenas em comentários destemperados, ironizando o “politicamente correto”, que apareciam em postagens e pequenos vídeos na rede digital, ou comentários burlescos, provocativos, pelos quais vinha ganhando popularidade antes de o mundo político dar-se conta. Nos primeiros dias até Bolsonaro parecia atordoado com o resultado: tornou-se Presidente quase sozinho, a partir de um partido nanico (que agora deixou de ser nanico), sem fundo partidário, sem alianças, com pouco financiamento (e mesmo assim sobrou dinheiro doado para a Santa Casa), sem tempo de rádio e TV; na reta final, quase sem sair de casa[2].

E com o menosprezo de grande parte dos jornalistas da mídia tradicional e das pessoas (eu inclusive) que consideraram (e consideram) inaceitável a linguagem agressiva contra algumas minorias, a defesa da ditadura 1964-1985 e a de Pinochet e, sobretudo, a justificação da tortura e da violência. Verdade que linguagem ponderada e análise de programas não foram o forte desta campanha em espaço algum: predominaram frases curtas, lemas, palavras de ordem e ofensas. Os votos não foram para quem analisou programas racionalmente e apresentou propostas factíveis. “Tosco”, “sem noção de políticas públicas” foram adjetivos muito usados para Bolsonaro, e não lembro que alguém o considerasse carismático, antes de outubro de 2018.

E não é que venceu com uma respeitável diferença de 10 pontos percentuais? Uma lição sobre uso do celular? A panfletária Carta Capitalem sua Edição Especial da Eleição colocou na capa um celular que, em letras garrafais, chamou de “A ARMA DOS IMBECIS” (em mais uma amostra do tipo de linguagem desta campanha eleitoral). Fui averiguar quantos brasileiros tem celular: 138 milhões, equivalente a 94% dos eleitores registrados. Uma lição sobre custos de campanha? Sinal que os fundos que usam nossos impostos, como o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral podem e devem ser eliminados. Uma lição sobre o imprevisível na política? Ou sobre a incompetência dos analistas supostamente informados em suas torres de marfim? Pois em tese abalos sísmicos podem ser previstos, com alguma aproximação, pela observação de camadas tectônicas e por sinais de distúrbios atmosféricos provenientes de grandes rachaduras na crosta da terra. Mas os cientistas políticos só perceberam a energia das tensões quando ela apareceu na superfície, na telinha do que alguns lulopetistas mais radicais só agora classificaram de “arma dos imbecis”. Talvez ainda mais surpreendente é quanta gente foi eleita, deputados federais e estaduais, senadores e governadores, simplesmente por se colarem no nome Bolsonaro.

Ainda teremos que pensar sobre a reviravolta que, segundo algumas manchetes precipitadas da imprensa internacional, moveu o Brasil para a extrema direita. Ainda não se conhece bem a “cara” do futuro governo de direita tupiniquim, que deve ser julgado daqui em diante, e não por uma campanha em que os dois lados da contenda se acusaram mutuamente de preparar uma ditadura. É falso, contudo, dizer que o voto foi salto no escuro ou que se votou numa incógnita. Verdade que o programa apresentado era muito geral e, como disse alguém, uma apresentação estudantil em “power point”. Mas não eram páginas em branco: os eleitores responderam a sinais, símbolos, e declarações do candidato. Quem elegeu Bolsonaro não o elegeu apesar do que ele disse, e sim, pelo que disse. Por enquanto Bolsonaro reuniu anseios e decepções de diferentes grupos da sociedade, impulsionados pela revolta contra a corrupção, a tomada de consciência de quanto dinheiro público era desviado enquanto aumentava o déficit e de quanto é pesado e caro o Estado brasileiro, a promessa de “linha dura” contra criminosos e de critérios mais meritocráticos, o cansaço difuso e irracional com “tudo o que está aí”, o reconhecimento do fracasso de governos de coalizão que não conseguiram cumprir suas promessas (refletido na rejeição do “centrão”). Os resultados indicam que, fora do mundo acadêmico, quase ninguém se preocupou com a etiqueta de “fascista”.

Meu voto no segundo turno, 28 de outubro de 2018, foi o mais angustiante da minha longa vida. Incluí algumas considerações sobre como se deu a decisão, pois dela deriva uma rejeição radical ao “terceiro turno” e à irresponsabilidade dos que já querem começar a contagem regressiva para um novo “impeachment”. Na véspera da votação ainda soubemos que existiram, sim, esforços de aproximação com Haddad na tentativa de formar uma frente com candidatos do “centro” (ou assim chamado centro) como Ciro, Marina ou Alkmin, ou de partidos como PSDB, Verde, Rede ou PPS. Mas Haddad permanecera inflexível, não admitira qualquer negociação da sua orientação geral, supôs que eleitores desses políticos automaticamente iriam aderir à sua candidatura, que aceitariam sua última narrativa da eleição como confronto entre “a civilização e a barbárie”, em que ele aparecia como defensor único da democracia. Fato é que a tal “frente democrática” nunca se formou. O histórico e o programa do lulopetismo não davam a Haddad credenciais democráticas suficientes para liderar um movimento anti-Bolsonaro. Nem que alguém conseguisse entender o que quis dizer o assessor da ex-Presidente Dilma, Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos mais importantes economistas do lulopetismo, que, na já citada Carta Capital, inventou uma comparação retumbante entre o celular da capa e câmaras de gás: “O totalitarismo do terceiro milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a informação que não pensa a si mesma.“ “Informação que não pensa a si mesmo” é o que, mesmo? É o celular que os derrotados consideram arma dos imbecis?

Se alguma dúvida tive, sobre a decisão de anular o voto no segundo turno como protesto contra a polarização e pela incapacidade de enxergar o menos pior dos extremos, foi quando li aquele manifesto de economistas, em inglês, que mandava votar em Haddad. O manifesto tinha a fina flor dos arquiconhecidos “amigos da inflação” e autodenominados keynesianos e altos funcionários de governos do PT (ainda que abrisse avisando que assinavam também críticos da política econômica do PT, talvez um ou outro que não consegui detectar perdido na multidão) e de alguma parte da esquerda internacional, incluindo o economista que foi talvez o mais irresponsável de todos os ministros da fazenda deste planeta, o grego Yanos Varoufakis[3]. Colocaram em primeiro lugar na lista das assinaturas um Nobel de Economia, G. Akerlof, sem dúvida respeitável, mas que jamais mostrou qualquer relação com o Brasil (a não ser que se considere que ser marido de Janet Yellen, ex-presidente do BC americano, é ter relação com o Brasil, já que um aumento de juros nos Estados Unidos pode ser ruim para o Brasil). Acho que essa “Declaração de Economistas em Apoio à Democracia Brasileira” em que se arregimentaram economistas estrangeiros que sequer credenciais de “brasilianistas” tinham, só não causou maior indignação porque poucos leram o texto (que na íntegra apareceu só em inglês), ou olharam de ponta a ponta a lista dos assinantes, ilustres mais que conhecidos e ilustres desconhecidos. O manifesto ficará como amostra de arregimentação de defensores dos governos petistas manipulando incautos, ao estilo do que foi aquela de envolver dois membros do comitê de monitoramento da Convenção de Direitos Políticos para fazer crer que a ONU ordenava a participação provisória de Lula na eleição.

O primeiro pronunciamento de Bolsonaro na rede foi simples, há uma simbologia de unidade nacional na citação ao Duque de Caxias e o recém eleito se propôs ser presidente de todos os brasileiros. Não levamos em conta a retórica na campanha? Pois temos que levar em conta a retórica, diferente agora, do novo Presidente da República. No vídeo do discurso da vitória há uma parte introdutória, da reza do pastor, que por pouco não ficou mais comprida que o discurso formal de vitória. Essa foi a parte mais assustadora –  e religião deveria ser coisa de foro íntimo, o estado é laico, e no Brasil há centenas de religiões. O discurso lido, para a TV, já é evidentemente trabalho de equipe, não é espontâneo como aquele primeiro vídeo de agradecimento, caseiro. Independentemente da Bíblia, claro que gosto da frase “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Para mim soa como outra, laica, do crítico dinamarquês Paul Henningsen, que lembro com frequência: “a verdade é sempre revolucionária”. O simbolismo lá na mesa – antes de mais nada a Constituição, mais a bíblia, mais um livro sobre Churchill – é bom. O discurso da vitória foi melhor, com vários pontos positivos e a defesa das liberdades democráticas. De agora em diante temos que ver como se forma o novo governo, como os seus integrantes que nunca tiveram cargos executivos vão aprender a governar, que é diálogo e negociação, e analisar cada proposta, apoiar o que convém ao Brasil, criticar o que não convém. O que fará para tirar o Brasil da estagnação econômica? Vamos ver no que vai dar.

[1]Durante um dia correu mundo a notícia de que, ignorando o protocolo das grandes democracias, o candidato derrotado, Fernando Haddad, não telefonara para cumprimentar o adversário, Jair Bolsonaro, pela vitória. Seria criada uma nova narrativa? Mais uma na série que começa com a “ilha da fantasia” de Madame Rousseff, com a narrativa do golpe, a da conspiração de forças ocultas nacionais e internacionais para derrubar Lula e seu legado, a do perigo de governo militar a repetir o que aconteceu 54 anos atrás, a farsa do envolvimento da ONU, a narrativa de que a eleição opunha as forças da “civilização e da barbárie”? Afinal, com um dia de atraso, Haddad cumprimentou Bolsonaro nas redes sociais, e justificou o atraso pela necessidade de se recuperar do choque. Ou seja, o atraso não foi para lançar dúvida sobre a legitimidade da eleição, mas alguns dos seus liderados ultrarradicais e internautas começaram campanha por impeachment mal terminada a contagem dos votos.

[2]Essa foi mais uma circunstância que causou muita polêmica e, assim, divulgação de seu nome: Bolsonaro foi acusado de “fugir” do debate, enquanto o público mais compreensivo tentava entender o que é para uma pessoa que quase morreu esfaqueada, e seus circundantes, estar com uma bolsa de colostomia colada no corpo.

[3]Escrevi sobre a crise grega e Yanis Varoufakis na antiga revista Política Externavol 24 no 1 e 2 jul/dez 2015 (www.politicaexterna.com.br), “Tragédia grega”, pp.171-178.