Fernando Dourado

Brasil é penta.

Depois de “Fim de festa no estádio do Sarrià” e de “É tetra, é tetra, é tetra…”,ambos publicados nesta “Será?” nas últimas semanas, hoje vem o último bloco. Este cobrirá os anos de 2002, 2006, 2010 e 2014, quando a Copa do Mundo foi realizada no Brasil. Em 2002, como sabido, nos sagramos pentacampeões em Yokohama, Japão. Com a Copa de 2018 em franco curso na Rússia, é evidente que me cingirei à última edição, a que ficou marcada pela histórica goleada de 1 x 7 que nos aplicaram os alemães no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte. Deixarei o relato sobre a Rússia para um dia, quando “Será?” voltar a me franquear espaço para futebol, depois dessa inusitada série de três longos capítulos dedicados ao tema. Sobre a edição de 2018, tenho a destacar que, pela primeira vez em tantas Copas, tinha recebido um convite oficial de uma pequena empresa de comunicação para ir à Rússia – país que adoro -, para lá fazer uma cobertura não necessariamente futebolística. O foco central seriam as mundanidades e a cultura, o que teria sido fascinante, dadas as chances de conhecer cidades onde ainda não fui, caso de Volgogrado, Rostov, Samara e Kazan. Ocorre que, contratualmente, tinha que responder à emissora até o último dia útil de fevereiro. Ora, justamente nesses dias estava às voltas com uma agenda estadual, em São Paulo, que, ademais de ter desdobramentos nacionais – falo de ajudar os pré-candidatos do PSDB Luiz Felipe d´Avila e Geraldo Alckmin -, sinalizava com responsabilidades tais que à época me pareceram mais transcendentes do que uma simples Copa. Então, declinei. Foi um erro de avaliação pelo qual jamais me penitenciarei o bastante. Mais do que nunca, sou da opinião de que a vida é o hoje, o aqui e o agora. Sempre que subverti essa ordem em nome do amanhã, mesmo que este seja o do País, o arrependimento veio a reboque. Por incrível que possa parecer, viver um mês na Rússia teria acrescentado muito mais a mim do que vivenciar o desespero diuturno de decodificar os meandros da alma tucana, um conjunto sem fim de matrioshkas. Pois dentro de cada uma delas, jaz uma réplica mais acanhada da mesma matriz. De mais a mais, a agenda brasileira poderia ter conhecido uma trégua sem maiores prejuízos, e a pequenez de minha vida combina mais com o futebol do que com desenhos elaborados de alianças diplomáticas para cuja consecução temos material mal testado. Não há de ser tão grave e vamos começar nossa narrativa pelo pentacampeonato.

2002, Japão e Coréia do Sul

Essa foi a Copa das madrugadas. Devido à diferença de fuso horário, os jogos aconteciam entre duas e quatro horas da manhã, rara vez um pouco mais tarde. Era inusitado ver os postos de gasolina e as lojas de conveniência de Higienópolis, São Paulo, coalhadas de uma moçada uniformizada de verde e amarelo, ou buzinando estridentemente pelas ruas escuras. Dessa vez, não me senti tentado a escapar para ver os jogos ao vivo. Se não havia dúvida de que os anfitriões dariam um show de organização, a vida esportiva asiática me fascinava mais por outras modalidades e o futebol decididamente não era uma delas. Na verdade, em 1988, vira os Jogos Olímpicos em Seul e senti desde então que a Coréia do Sul se preparava para entrar na competitiva arena global em grande estilo e em todos os segmentos. No Japão, país onde já estivera dezenas de vezes, a modalidade que mais me fascinava era o sumô, único esporte de contato para o qual estou até hoje habilitado. Tive o prazer de ver alguns torneios em Tóquio e Osaka e de provar a calórica dieta dos atletas em restaurantes especializados. Na Copa de 2002, começava um relacionamento amoroso e as madrugadas eram um excelente pretexto para noites esticadas e despertares antecipados. A primeira fase não apresentou grandes surpresas, até onde estou lembrado, muito embora a Turquia nos tenha enfrentado de igual para igual. Depois passamos pela Bélgica e sofremos bastante para vencer a Inglaterra, com gol providencial de Ronaldinho, quando a madrugada paulistana trepidou em uníssono, indiferente a crianças e doentes. Então esbarramos mais uma vez na Turquia, de quem ganhamos com um gol de Ronaldo gorducho. Se a Argentina já devera uma Copa a Maradona, e a ele só, o título de 2002 veio em grande medida pelos bons ofícios de Ronaldo e, como negá-lo, do pernambucano Rivaldo, então no auge da forma. Quando fizemos 2 x 0 contra a Alemanha, no estádio de Yokohama, o Brasil explodiu num foguetório sem fim. O dia já raiara e eu estava numa casa do Jardim Paulista. Amigos do mundo todo escreviam mensagens entusiasmadas e mais parecia que éramos a nação mais abençoada da Terra, aquela para onde convergia o olhar cobiçoso do planeta. Éramos felizes, ricos, versáteis e vitoriosos. Se também éramos idiotas, isso não constava da ementa de então. Para quem passara 24 anos esperando um título, eis que este chegava apenas 8 anos depois do último. Quanto a mim, vivia momento profissional de transição. Papai morrera em 2000 e tudo apontava para a retomada de uma vida mais focada nos valores morigerados da nova namorada que, na verdade, era uma das mais antigas das que tivera. Fomos comemorar com um almoço na alameda Lorena, num vistoso restaurante português. O pentacampeonato me restaurou um certo gosto pelo futebol mesmo porque o Santos estava começando um período virtuoso. Um bom amigo do São Paulo me chamava para ver jogos das tribunas do Morumbi, a que se seguiam pletóricas rodadas de cerveja, e, de vez em quando, descia para ver partidas na Vila Belmiro. Ao final daquela Copa, estava feliz em ter por uma vez uma vida de horizontes acanhados. Quem me visse de fora era capaz de jurar que estava prestes a me tornar nada mais do que um sedentário cidadão paulistano, desses voltados para o sustento imaterial de uma utopia familiar. Mas todo guerreiro precisa de uma pausa. Eu não seria exceção, pelo menos por algum tempo.

2006, Alemanha

Já não lembro de detalhes. Mas tenho quase certeza de que a Copa de 2006 deveria acontecer num país do continente africano. Nesse contexto, acho que os grandes contendores eram África do Sul e Marrocos, sendo este meu favorito. No caso do primeiro, seria uma forma de fazer o mundo descobrir um lindo país que ficara maculado por conta das políticas raciais segregacionistas, felizmente enterradas. No caso do último, bastante próximo da Europa, o evento ensejaria a descoberta de um mish mash cultural de enorme beleza, ademais de conferir transparência às práticas de uma monarquia eivada de anacronismos, o que só beneficiaria aquela gente hospitaleira, que eu vinha visitando desde 1985, pelas mãos do amigo Abdelhak El-Amrani. Mas na votação, um delegado neo-zelandês, uma dessas almas anódinas da cartolagem a soldo, tirou da África essa primazia. E terminou favorecendo a Alemanha, um pais sempre pronto para sediar qualquer coisa a qualquer momento. Afinal, onde mais se tem um regramento escrito a ser acionado em caso de colapso do sistema constitucional? Durante a preparação, fui a Weggis, Suíça, assistir aos treinamentos e tive péssima impressão. Soube que as farras eram de regra, puxadas por Ronaldinho e Adriano. Na cidade de escolha de Mark Twain e Sergueï Rachmaninoff, dormia-se pouco. Na Copa, o Brasil passou bem pela Croácia, Austrália e Japão, agora treinado por Zico, o responsável pelo desastre do México em 1986 e pelo temerário corte de Romário, em 1998, o que nos privou de uma liderança alternativa. Que fosse agora afundar o Japão, país onde jogara e onde se notabilizara por escarrar numa bola adversária em cobrança de pênalti contra seu time. O que é pior: disse aos japoneses, para escapar de uma punição, que isso era prática comum no Brasil. Eu estava numa fase azeda e o período de fidelidade a uma vida mais acomodada estava tocando o fim. A chegada de um cachorro à casa, a que se seguiu uma ninhada de filhotes, assinalou o fim de minha paciência. Nas oitavas-de-final, ainda ganhamos de Gana. Na casa de amigos, vi quando naufragamos diante da França nas quartas-de-final, com gol do fino Henri. Precisando mudar de ares, ainda vi minha sogra exultar com a queda dos alemães diante dos italianos, já que ela achava os primeiros um escárnio a seu judaísmo acendrado, mais até do que ter um genro goi. Dois dias antes da final, fui para Belo Horizonte para assistir à grande partida na companhia de franceses que moravam em Minas Gerais, levado pela mão pelo amigo de kibutz Daniel Dahan, hoje meu desafeto por conta de Lula. Pode uma coisa dessas? Apresentei o Brasil ao cara quando ele já tinha mais de 40 anos; acolhi-o em diversas ocasiões e hoje ele é um honrado cidadão brasileiro, desses que votam em toda eleição. Pois não é que ele errou a mão e passou a se arvorar de meu professor da disciplina Brasil? Seja como for, foi com ele e seus amigos que, sob o nevoeiro das Alterosas, vi a França afundar. Zinédine Zidane, nosso algoz em 1998, perdeu a cabeça e aceitou uma provocação vil de um zagueiro italiano. Expulso, a França perdeu seu jogador de referência e os italianos levaram a melhor nos pênaltis. Na segunda-feira seguinte, voltei para São Paulo e recomecei vida nova. Dias depois do fim da Copa, desmontei as pontes anteriores e, feliz, viajei para Chicago de olho em novos projetos. Entre o subúrbio de Elmwood Park e a biblioteca da Universidade De Paul, recompus minha individualidade, triei o que cabia à minha vida e, aliviado, descartei o resto.

2010, África do Sul

Para quem ainda não sabia até então, a África do Sul é um país de clima temperado. Na época da Copa, no meio do ano, Joanesburgo é gelada e muita gente se surpreendeu ao ver as imagens daquela gente agasalhada, dançando nas ruas o toyi-toyi, ritmo que pontua alegrias e protestos nos inúmeros guetos do South-West Township, dito Soweto. Já na magnífica Cidade do Cabo, onde os ventos de mares convergentes podem levar homens corpulentos a beijar as areias da praia em Green Point, o termômetro é mais benevolente. Dos estádios que conheci quando lá estive poucos anos depois da Copa, nenhum me impressionou tanto pela beleza quanto o Cape Town Stadium. O de Soccer City fica isolado na estrada que leva a Soweto. Mas o Moses Mabhida, da agradável Durban, minha cidade revelação, foi o que sediou o jogo mais duro da fase de grupos do Brasil quando empatou contra Portugal, depois de vitórias contra a Costa do Marfim e a Coreia do Norte, tendo sido vazado em ambas as oportunidades. Depois de desclassificar o Chile nas oitavas-de-final, chegou a vez de enfrentar a Holanda em Port Elizabeth. A caminho de Salvador, Bahia, lembro que assisti ao jogo no saguão do aeroporto de Congonhas, cercado de gente engravatada. A cabeça de Felipe Melo tirou o goleiro Júlio César de uma defesa certa e nos traiu. Estávamos fora. Desolado, peguei o voo decidido a torcer por algum time que nunca tivesse ganhado uma Copa. E se tivesse que ser algum já vitorioso, que este fosse o Uruguai que vinha lutando com o invariável brio alviceleste. No mais, poderia ser Holanda ou Espanha que, para minha alegria, terminaram fazendo a final em que a “Fúria”, por uma vez na vida, fez bonito e o bonachão Vicente del Bosque pôde rir com todas as ranhuras das papadas escanhoadas. Como benefício adicional, sendo o Barcelona a base do time, o antipático separatismo catalão deveria conhecer um longo período de hibernação, pensei. Não poderia estar mais equivocado. Certo é que passei a Copa dividido entre várias capitais brasileiras. A Alemanha ficou em terceiro lugar contra um valente Uruguai e tudo fazia prenunciar que a Mannschaft deveria chegar ao Brasil, em 2014, com força e determinação, muito embora fosse ter pela frente um anfitrião de enormes credenciais. Nas visitas subsequentes que fiz à África do Sul, constatei que certos países não podem se permitir o luxo de sediar grandes eventos impunemente, sob pena de se abrirem brechas descomunais para a corrupção, o superfaturamento e a nefanda indústria dos aditivos, ditados pela urgência. O presidente Jacob Zuma, no caso, cercado pelos irmão Gupta, da Índia, se arrastaria por longos anos às voltas com explicações canhestras sobre os escândalos de favorecimento na montagem da infraestrutura. Até, por fim, cair. No mais, os estádios se revelaram elefantes brancos e um ou outro ainda sedia jogos de rúgbi, o grande esporte do país junto com o críquete. Na minha leitura, revelada ingênua, o Brasil haveria de coibir frontalmente os caprichos da FIFA e certamente que nosso poder de influência na entidade os acautelaria na hora de exigir estádios novos. Afinal, éramos uma espécie de Vaticano do futebol. Na verdade, os fatos mostraram que, de novo, errei por muito. Mas todas essas conclusões ainda estavam em formação e se perdiam no barulho insuportável que faziam os sopradores de vuvuzelas. Melhor era investir no novo namoro que se esboçava. E isso foi um grande acerto.

2014, Brasil

Detestei de cara a ideia de ter uma Copa do Mundo no Brasil. Bem ou mal, quando elas acontecem no exterior, temos um pretexto para viajar e conhecer o novo. Mas até que não seria má ideia. Especialmente se pudesse ajudar a economia, já exangue das políticas anti-cíclicas do populismo de Dilma Vana que, na verdade, coitada, estava mais preocupada em afinar a silhueta e em garantir que o padrinho se mantivesse longe da cadeira presidencial a que, bem ou mal, ela se afeiçoara. As dores de cabeça começaram com os abusos de um certo Jérôme Valcke, um Gauleiter de Blatter que chegava aqui ironizando nosso cronograma caótico, mas que era tratado como um intendente plenipotenciário. De nosso lado, quem tínhamos? Um homem bem-intencionado e algo bovino, chamado Aldo Rebelo, então Ministro, e uma súcia de aproveitadores que defendiam os interesses impublicáveis das empreiteiras. Quanto mais salgada a conta para o erário, melhor. E então se construíam as tais arenas – este sempre foi um vocábulo malsinado no Brasil – que custariam centenas de milhões de reais para, na realidade, sediar três ou quatro partidas. Tudo isso é hoje conhecido. Foi assim que em 12 de junho, dia nos Namorados, ganhamos da Croácia. Cinco dias mais tarde, quando mamãe comemorava seus 82 anos, empatamos sem gols com o México. No terceiro jogo, batemos Camarões por 4 x 1. São Paulo fervilhava e a Vila Madelena, outrora amigável e convivial, virara o quartel-general das comemorações, com os jorros de urina ácida descendo até a rua Cardeal Arcoverde. Combinei com duas amigas e um amigo para vermos o jogo juntos. Na sequência, quando fomos jantar no Café Zena, na Peixoto Gomide, o clima da mesa azedou porque uma das meninas – falo de mulheres de mais de 50 anos, mas paciência – fez uma apologia da Venezuela e do PT. Foi então às turras com meu amigo para quem chavistas deveriam ser tratados à bala. Já estava no Recife no jogo dramático contra o Chile em que o capitão Thiago Silva se desmanchou em lágrimas na hora do desempate nos pênaltis. Ali tive a clara noção de que os nervos podem nos minar quando se trata de jogar em casa. Em 4 de julho, fui ao Maracanã onde vi a Alemanha bater a França. Na sequência, compareci à Confeitaria Colombo, onde amigos tinham contratado um bufê para ali vermos Brasil e Colômbia. Eis outro jogo dramático em que penamos para ganhar de 2 x 1. Perto do fim, num lance brutal, um colombiano arremeteu contra Neymar, e o tirou da semi-final contra a Mannschaft, a tremenda seleção da Alemanha. E aqui vem um lado surpreendente. Na manhã seguinte, fui a São Paulo para uma reunião de trabalho e de lá resolvi subir para o Recife, onde assistiria à partida contra aquela mesma Alemanha que vira no Maracanã. Entrei num site de compras e me deparei com uma passagem barata para o dia seguinte. Desatento ao horário, constatei que perderia o jogo porque estaria voando. E, de repente, achei que era boa ideia. Pouparia as coronárias e chegaria ao destino com o resultado pronto. Quando a aeromoça anunciou que o primeiro tempo terminara 0 x 5, achei graça pois jurei-a equivocada. Na chegada, quando a voz do piloto deu os 1 x 7, passageiros uniformizados rasgaram a camisa Canarinha. No Recife, vi e revi os tapes. E, sem amargura, fui dormir, pois nada há como a força inconteste dos fatos. No fundo, o avião me poupara das cenas macabras de um futebol raso e perdido. E, da parte adversária, de uma exibição brilhante, articulada e magnânima. Pois todo mundo sabe que, se ela quisesse, o castigo poderia ter sido pior. De lá para cá, o Brasil nunca mais saiu da terapia intensiva. Mas essa já é outra história.

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