Clemente Rosas

W. J. Solha em cena do filme “Era uma Vez Eu, Verônica” de Marcelo Gomes (2012).

W. J. Solha em cena do filme “Era uma Vez Eu, Verônica” de Marcelo Gomes (2012).

Romancista ao Norte! Foi com tal anúncio que, em 1927, Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, em artigo publicado na imprensa do Rio, chamou a atenção para o então obscuro José Américo de Almeida, que acabava de publicar, modestamente, o seu romance “A Bagaceira”.  Embora consciente da desproporção, atrevo-me a imitá-lo, para alertar o distinto público sobre o último livro de W. J. Solha, paraibano por adoção e livre escolha: “DeuS E OUTROS QUARENTA PrOblEMAS”.

A tarefa é ciclópica, pois trata-se de livro de poesia, e poesia, embora seja “o gênero literário por excelência”, como a classificou Walmir Ayala, é lida por muito poucos.  E, por outro lado, eu não tenho a estatura de arauto do velho Tristão.  Para compensar-me, tenho o fato de que Solha não é nenhum iniciante: teatrólogo, ator de cinema, artista plástico, romancista com várias obras premiadas, fixou-se agora no campo poético, com três poemas longos em livro: “Trigal com Corvos”, “Marco do Mundo” e “Esse é o Homem”.  O quarto é o que aqui propagamos, com a força da convicção e o tempero da amizade.

Além disso, devo pagar tributo aos prefaciadores do livro – Expedito Ferraz Júnior e Hilton Valeriano – que fizeram uma análise percuciente da obra, ressaltando-lhe a versatilidade do estilo, a originalidade da forma, a riqueza dos recursos, os matizes da emoção.  Pouco restou para este desertor da poesia, que faz crítica por puro amadorismo.

Fazer poesia é cada vez mais difícil, embora a moderna prática do abandono opcional da rima e do metro tenha aberto o campo para uma enxurrada de “poetas”.  O problema é que poesia não é apenas sentimentalismo, nem tampouco o atual vezo por brinquedos verbais ou metáforas inusitadas.  E é cada vez mais difícil desbravar-lhe novos caminhos, trazer-lhe contribuições novas.  É por isso que já não me atrevo a cultivá-la, reverenciando os amigos que lhe permanecem fiéis.  E é por isso também que meu conterrâneo Hildeberto Barbosa Filho, professor, crítico e poeta, tem afirmado que “odeia poesia” – aquela falsa poesia dos sentimentaloides ou dos propositores de enigmas.

Mas a poesia de Solha é inovadora sem ser artificiosa.  Analítica, ao modo de João Cabral, filosófica, como a de Augusto dos Anjos ou Fernando Pessoa, atrai e prende pela singularidade.  Segundo um dos seus prefaciadores, desenvolve-se como em espiral, arrebatando o leitor para campos impressentidos da cultura de elite ou de massa, evocando autores clássicos e contemporâneos, girando entre o dramático e o irônico.  O recurso da rima é usado de forma descontraída, sem que venha a amarrar a dicção.

Arrisco ainda imagem mais ousada.  Não a da espiral, mas a do buscapé, cuja trajetória é errática: não sabemos para onde vamos ser levados.  E desconfio que não só as ideias acomodam-se em rimas: a perspectiva destas pode “puxar” o enunciado para uma ocasional digressão, retomando-se o caminho desejado mais adiante.

Cabe, porém, uma advertência aos apreciadores da boa poesia.  A enorme erudição do autor, em matéria de literatura, artes plásticas e música, o faz recorrer a referências que muitas pessoas desconhecem, perdendo parte da fruição estética dos poemas.  No meu caso pessoal, não pude acompanhá-lo bem nas remissões à música e à pintura.  Mas na literatura fomos quase sempre juntos, autor e leitor, pelas sendas poéticas abertas em terrenos até então inexplorados.  Pois o certo é que Solha encontrou e desenvolveu, em meio a tantos descaminhos de maneirismos e fórmulas herméticas por onde ultimamente tem andado a poesia, uma nova forma de poetizar.

Talvez venhamos a ter aqui mais um caso de escritor cujo mérito só virá a ser bem reconhecido após a morte, como ocorreu com Kafka, Proust, o próprio Augusto dos Anjos, o maranhense Sousândrade, Joyce, Lampedusa, até mesmo o Jorge de Lima da “Invenção de Orfeu”, eterno desafio para os exegetas.  Mas isso não é, obviamente, o que desejo para o amigo Solha, que vem pagando o preço da nobre decisão de permanecer na Paraíba.  E este texto é um pálido esforço para esconjurar o avantesma.  Pois a grandeza de sua atitude ajusta-se ao preceito do poeta Juan Ramón Jimenez, tantas vezes referido pelo Dr. Celso Furtado em seus livros, e que aqui reproduzo, apenas de forma invertida:

“Corazón, cabeza

En el aire del mundo”

        (pero)

“Pied em la patria

Casual o elegida”.

No caso de Solha, não a distante terra paulista, que por casualidade o viu nascer, mas a sua eleita, e sempre cultuada, pátria paraibana.

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