João Rego

O conceito de pátria está associado, dentre vários valores culturais, às lutas e conquistas militares. Tem sido assim ao longo da História, desde que o homem começou a viver em sociedade. O papel de manutenção da ordem institucional, com o uso da força, em todo Estado moderno, cabe ao aparato policial militar. Não se pode prescindir dele. Mesmo no século XXI, onde as democracias modernas se apresentam como modelo civilizatório máximo a ser atingido pela sociedade, o aparato policial militar – aquele a quem por lei é delegado o exclusivo uso da força para manter a coesão social – impõe-se, como uma herança atávica, que denuncia a nossa natureza pulsional, primitiva e bélica.

Todo o avanço civilizatório que forjou a cultura – aquilo que nos distingue dos animais – é uma camada que envolve essas forças primitivas, sem indício de que ela, a cultura, mesmo em um futuro longínquo da História, nem com toda a avançada tecnologia e inovação, irá extinguir essa natureza autofágica e destruidora, que forja o homem e suas pulsões.

É este o mal-estar da civilização, tão bem denunciado por Freud em sua famosa obra. Estamos fadados, por destino e natureza, a viver, gerações após gerações, este conflito entre barbárie e civilização.

A democracia é a camada civilizatória mais aperfeiçoada que a humanidade conseguiu atingir. Um tipo de sociedade onde a maioria da população elege, periodicamente, dentro de regras aprovadas, seus governantes, e sobre eles atua com o controle de mecanismos como: transparência dos gastos públicos, imprensa livre, protestos pacíficos e pressões legítimas, sendo o mais eficaz deles a sistemática renovação da classe política, por meio do voto.

No Brasil, após 195 anos de independência da colonização portuguesa, quando éramos mera colônia extrativista, entramos – passadas várias décadas de períodos instáveis e ditaduras, sempre instrumentalizadas pelas forças militares, sendo a mais recente a de 1964/85 — no fértil e estruturante período democrático.

Viver e manter o dinâmico Estado democrático em uma sociedade é atingir o estágio máximo possível de civilização, aquele que acima descrevi como em luta infinda com a barbárie. É sinônimo de consolidação estrutural da cidadania, onde o cidadão define, por meio dos processos de representação política e de construção de valores culturais, os destinos da nação, que são, em resumo, seu próprio destino e o das gerações que o sucederão.

Um governo autoritário infantiliza e esmaga a cidadania, e a democracia tem justamente na cidadania seu principal fulcro autorregulador.

O que estamos experimentando com as crises deflagradas pela operação Lava Jato é a mais profunda, intensa e espetacular atividade da nossa democracia em operação. É inquietante? Causa indignação? Torna o nosso cotidiano insuportável, pelas incessantes revelações de corrupção? Sim, é verdade. Mas quem disse que a democracia é um paraíso, onde a sociedade  deita em “berço esplêndido”? Democracia é uma luta de cidadania incessante, só consolidada estruturalmente através de padrões éticos construídos ao longo de décadas.

Todos os outros desafios, brilhantemente vencidos, como a transição para a democracia nos anos oitenta, a Constituinte de 1988, o impeachment de Collor, distinguem-se desta crise atual por não terem tido forças legais colidindo com a elite política — os políticos estavam livres, leves e soltos, posando de heróis e construindo seus mitos. A revelação, camada a camada, da corrupção endêmica, profundamente enraizada nas relações promíscuas entre o grande capital e a elite política, que nos assusta e nos enoja a cada passo, é um célere processo transformador de padrão da prática política, onde valores como ética, transparência e responsabilidade estarão firmemente oferecidos às novas gerações.  Sim, o velho sempre morre, o importante é que as novas gerações de políticos, empresários e eleitores emerjam marcadas a ferro e fogo por estes novos padrões.

E o Mourão? Deixei-o para o final, pela sua irrelevância diante de tudo o que está posto acima. Militares que não conseguem adequar suas ideologias ao ambiente democrático são tão danosos quanto a corrupção endêmica em grande parte da classe política, que começa a ser desnudada em nosso país.  Ou quanto o crime organizado de facções, no tráfico de drogas dos grandes centros urbanos. São vetores de distúrbios à democracia, que devem ser regulados pela força da lei e do Estado Democrático.