Helga Hoffmann

Dentre as cerimônias da posse do governo Bolsonaro, aguentei firme a ouvir, de ponta a ponta, a meia hora do discurso mais estapafúrdio que já ouvi em minha longa vida de ouvir discursos. Sim, quem trabalha na ONU naquela parte que é o Secretariado da Assembleia Geral, tem oportunidade de ouvir muito discurso. Em algumas ocasiões, funcionários do Secretariado são obrigados a ouvir e anotar discursos que se estendem madrugada adentro, quando a Assembleia Geral (ou alguma de suas Comissões e Comitês) tem alguma dificuldade especial para chegar a um acordo e decidir os termos de uma resolução.

Discurso tão preocupado em dar show de erudição como esse do Embaixador Ernesto Araújo, o novo Ministro das Relações Exteriores do Brasil, nunca ouvi na vida. E olha que já ouvi muita “aula de isebiano”, por exemplo, que queria analisar a situação contemporânea e começava lá com os gregos do século V antes de Cristo. Mas essa pregação da posse teve grego e latim, teve citação do Padre Anchieta em tupi; talvez os versículos da Bíblia devessem ser lidos em aramaico, o chanceler os citou em grego e pediu desculpas por não saber todas as línguas. Tem primeira vez para tudo: é a primeira vez que ouço em cerimônia de posse um Ministro que corrige a tradução costumeira do latim de uma expressão de Dom Sebastião.

Lembro que quando algum funcionário do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional vinha de Washington para alguma reunião técnica na ONU, e fazia uma apresentação cheia de truques visuais, como muitos gráficos coloridos e fotos, mas de pouco conteúdo concreto, os funcionários da ONU lá do meu grupo aplicavam um rótulo: “mickey mouse presentation”. Pois a “mickey mouse presentation” inaugural do Ministro teve muito mais que latim, grego e tupi. Ainda preciso pensar em algum nome adequado para a apresentação que foi, sem dúvida, de “um arrneschto sem meedu”, na sua insistência de que não tinha medo do que dele dissessem: “não tenho medo de sofrer, de ser criticado … não tenho medo de ser brasileiro”, e que faria do Brasil um “Brasil sem medo”. De imediato lembrei da velha expressão de Stanislaw Ponte Preta, “samba do crioulo doido”, bastante adequada ao caso, já que a interpretação dos fatos históricos deste mundo que faz Ernesto Araújo é mais fantasiosa e longe dos fatos concretos que a das escolas de samba a que se referia o irônico Sergio Porto, fantasiado de Stanislaw. Mas não achei engraçado o discurso do “Ernesto sem medo”, achei ofensiva essa pretensão de monopólio da “coragem de amar a pátria”.

Fora ouvir muito discurso, também aprendi na vida profissional que quem está por demais preocupado em mostrar erudição não consegue clareza na exposição do seu argumento. Não consegui entender concretamente o que quis transmitir o novo Ministro das Relações Exteriores sobre a posição do Brasil no mundo, exceto, é claro, os rebuscados e hiperbólicos elogios ao Presidente que o nomeou: tratou longamente de explicar (e aí não usou grego!) o que é um mito e, mesmo assim, aplicou o rótulo a Bolsonaro. Verdade que aplicou o rótulo à sua maneira, a das indiretas, disse que foi apelido carinhoso dado pelo povo.  Claro que, de novo, me lembrei de outros carnavais, de uma marchinha que não esqueço: “Lá vem/O cordão dos puxa-saco/ Dando viva aos seus maiorais/ Quem está na frente é passado p’ra trás/ E o cordão dos puxa-saco/ Cada vez aumenta mais”.

Sim, talvez sejam tênues os limites entre respeito à autoridade e bajulação, entre consideração pelo seu chefe e sabujice, mas em outros carnavais puxa-saco incomodava mais ainda que bêbado. Pois Ernesto Araújo ainda fez mais uma contorção retórica, para comparar Bolsonaro com a rainha da Inglaterra, como expressão do patriotismo dos ingleses. Será possível que ele desconhece completamente os vários analistas políticos britânicos que mostram que a Rainha interfere pouco ou quase nada no governo do país, que sua função é simbólica? Será que Bolsonaro gostou da comparação? Não consegui ver que cara fez.

Consegui entender que o Ministro começou por expor um novo conceito de verdade (que não dependeria de fatos, e sim, do amor), e apresentou sua criação e definição de novos conceitos como “ortofobia” e “deofobia”. Além de seu peculiar entendimento de mitologia. Conhecimento, segundo pregou, é “experiência íntima” e então é difícil saber o que ele acha da acumulação de conhecimento pela humanidade ou por um povo e um país.

O conjunto é um amontoado de frases confusas de pretensioso messianismo e uma dose de misticismo. Pelo visto além de desonestidade intelectual também existe charlatanice intelectual.  Será que vale a pena enumerar a salada das citações? Recomendou que não se ouça CNN,  mas que se ouça Raul Seixas e Renato Russo. Que não se leia The New York Times. E que não se leia nem Foreign Affairs, revista da qual jamais alguém disse que não defenda e explique os interesses dos Estados Unidos. Aqui a noção de verdade que ele defende se alia ao seu obscurantismo. Estranha recomendação de quem explicitamente se declara vassalo incondicional dos Estados Unidos nas relações internacionais. Será que ele alguma vez já folheou a revista Foreign Affairs? Citou Fernando Pessoa, num estranho comentário de que no conceito deste “o Brasil é inferior”. Citou o Dom Quixote de Cervantes, Olavo de Carvalho, José de Alencar. Mandou ler Clarice Lispector, Cecilia Meirelles. Fez menção especial à novela “O Direito de Nascer”. Citou o Barão bem de leve (que supomos seja o Barão do Rio Branco) destacando apenas que era “Barão monarquista”. Nada contra cada citação em particular. Só ficou difícil de entender a junção atabalhoada e sem qualquer preocupação de racionalidade.

Talvez não faça muito sentido esforçar-se por entender o que é exatamente que o Ministro Ernesto Araújo quis transmitir. O que será que pretendia quando disse que “o Itamaraty é Ministério do Tempo” e tem que se voltar para a história. Talvez queira apenas sugerir que sabe história. Citou todo comovido o quadro do grito da Independência, a sugerir que ele está dando de novo o grito de independência do Brasil e, ridículo extremo, ignora que o quadro foi pintado depois e não retrata o evento, faz parte do “mito da Independência” e não dos fatos da Independência. Mas que importa isso para o homem sem medo? Pois não disse, logo de início, que a verdade não deve depender de fatos?

Para o futuro da nossa pátria, à qual o Ministro fez suas repetidas declarações de amor como se fosse dele o monopólio de tal amor, talvez seja irrelevante comentar as firulas desse discurso. Vamos esperar os resultados. Talvez seja tão irrelevante quanto registrar que o Brasil tem, de novo, uma primeira-dama muito linda. Mas, recordando as cenas desta posse do novo governo em 2019, tanto foi encantador o discurso em libra de Michelle Bolsonaro, quanto foi afronta à inteligência o discurso do Ministro Ernesto Araújo. Espero que ele se dê por satisfeito com o “show inaugural”. Que esqueça sua missão de cruzado ultranacionalista contra a globalização em maré de baixa, em que acusa “os outros”, mal especificados, de nada menos que querer extinguir a humanidade! Esperemos que se dedique ao que prometeu na parte final do seu discurso: tornar o Brasil um grande exportador e potência comercial aberta ao mundo. No discurso, infelizmente, falou do projeto exportador como se o Brasil já não fosse uma grande nação exportadora. Mais esse problema da ignorância messiânica desse que pensa que o Brasil despontará no mundo com ele. Pois o Brasil é uma nação que deve, além de conquistar novos mercados, evitar por em perigo os mercados que já conquistou, evitar desperdiçar irresponsavelmente o esforço que essa conquista já custou.