Sérgio C. Buarque 

Cuba está exportando médicos, serviço qualificado prestado pelos profissionais de saúde cubanos. Melhor do que exportar banana, açúcar ou niquel, commodities de baixo valor agregado, ou mesmo rum ou charuto. De acordo com a OPAS-Organização Pan-americana de Saúde, são mais de 16 mil médicos cubanos trabalhando em outros países (dados de 2010 que não incluem os 7.400 que vieram para o Brasil no ano passado). A controvérsia em torno do programa “Mais médicos” já está saturada. Cabe agora uma reflexão sobre o outro lado da operação: por que Cuba está enviando seus médicos para trabalhar no exterior? Generosidade? Política externa? Ou comércio exterior? A julgar pelo fornecimento de médicos para o Brasil (Mais médicos), trata-se de um negócio, uma política de comércio exterior com geração de divisas. O que não tira, em absoluto, o mérito deste produto de exportação de Cuba, a não ser que esteja sacrificando e deteriorando os serviços de saúde da população cubana pela escassez de médicos. Os dados dizem que não está.

Embora não se tenha elementos para avaliar a qualidade deste produto (digamos assim), é possível afirmar que a exportação desta mão de obra qualificada não gerou déficit de médicos em Cuba. Ao contrário do que se poderia suspeitar, a pequena ilha do Caribe tem um elevado estoque de médicos que permite “vender” para o exterior (permitam a expressão tão capitalista) mais até do que os atuais 23 mil que já saíram. Em 2010, ainda de acordo com a OPAS, Cuba tinha 66 médicos para cada dez mil habitantes, três vezes mais que o Canadá, mais do dobro dos Estados Unidos e da Argentina que tem o maior índice (32 médicos para cada dez mil habitantes). O Brasil tem 16 médicos para cada dez mil habitantes. Com mais de 76 mil médicos em atividade na ilha e formando, a cada ano, cerca de quatro mil novos médicos, Cuba pode ainda aumentar, e muito, a remessa de médicos para trabalhar no exterior sem gerar carência de profissionais de medicina no país.

Não estão disponíveis informações sobre os acordos do governo cubano com os parceiros da América Latina e da África. Mas com o Brasil foi firmado um contrato comercial mediado pela OPAS que, segundo consta, equivale a cerca de US$ 4 mil dólares mensais por médico (R$ 10 mil reais). Considerando que os médicos fiquem com mil dólares por mês (segundo acordo recente) e que a OPAS recebe 5% como overhead, com a “venda” de sete mil e quatrocentos médicos ao Brasil Cuba estaria gerando uma receita anual de US$ 248 milhões. E se o acordo para cessão dos 16 mil que trabalham em outros países foi semelhante ao realizado com o Brasil, o comércio com profissionais de saúde estaria dando a Cuba uma receita em divisas de US$ 786 milhões por ano.

Desde que haja demanda, claro, Cuba ainda poderia dobrar esta oferta de médicos mundo afora e, assim mesmo, mantendo um indicador médico/população bastante confortável; redução de 66 para 46 por cada 10 mil habitantes, mais do dobro do atual índice do Canadá e bem acima ainda da Argentina. Neste caso e, mais uma vez supondo padrões semelhantes ao contrato com o Brasil, Cuba faria um negócio milionário de US$ 1,57 bilhões por ano, quase 2% do PIB cubano; de qualquer forma, menos que o faturamento cubano com o enorme movimento de 2,7 milhões de turistas por ano (dados do World Development Indicators para 2013).

Grande negócio, portanto. Mas, convenhamos, estranho negócio de comercialização de pessoas portadoras do conhecimento e da qualificação. No mercado de trabalho, normalmente, o excedente de um profissional em determinado país (como parece ocorrer com os médicos em Cuba) pressiona os seus salários para baixo e, como reação (e abstraindo outros fatores), os profissionais tendem a migrar na busca de maior remuneração em países com déficit de médicos (e, em principio, maiores salários). Imaginem se os médicos cubanos pudessem emigrar livremente: o Brasil poderia atrair grande quantidade deles com os mesmos R$ 10 mil, a maior parte dos quais pago em dólar ao exterior, bom para o Brasil e para o médico. Em Cuba o mercado de trabalho não funciona e o comércio internacional é comandado pelo Estado que, portanto, pode definir se e quem pode emigrar. Um absurdo? Uma violência aos direitos humanos? Pode ser.

Mas vamos observar da ótica do país. A formação de um médico custa muito dinheiro, não menos que 80 mil dólares, e leva muito tempo. Se estamos falando de escolas públicas e gratuitas, caso de Cuba, a sociedade está fazendo um enorme esforço para aumentar o contingente de profissionais necessários para a saúde da população. Seria justo que, depois de formado, o médico, recorrendo ao direito legítimo de ir e vir, pudesse simplesmente fazer as malas e se mandar para outro país? Do ponto de vista dos direitos individuais, sim; mas da perspectiva da sociedade, não. Sem gastar nada e sem necessidade de esperar seis anos, o país receptor (Brasil, neste caso) recebe milhares de profissionais de um país pobre que alocou grande volume de recursos para a qualificação dos médicos.

Como conciliar a liberdade e o direito do cidadão profissional com o interesse coletivo da nação? A resposta não é simples e merece uma análise de custo e benefício além de uma negociação entre as partes, o indivíduo – que se beneficiou da formação profissional – e o coletivo – que financiou a sua formação. O governo não pode impedir que o cidadão exerça a liberdade de movimentação e emigração, mas o médico-cidadão teria que retribuir, de alguma forma, à sociedade pelo custo social que representou a sua formação. Assim, os médicos que vieram para o Brasil poderiam receber integral os dez mil reais do governo, mas teriam que se comprometer a reembolsar os oitenta mil dólares que custaram. Será que funciona? Não sei. O governo cubano dificilmente aceitaria e confiaria; e duvido que os médicos estariam dispostos a esta justa compensação.