Luiz Alfredo Raposo

Se não me engano (vejam, correjam!), foi Flaubert quem disse que, na sociedade burguesa, toda tragédia é uma tragédia do dinheiro. Da impecúnia, da prodigalidade. Do excesso de dívidas. E sua Emma Bovary é bem um emblema disso: matou-a mais (assim li) a dureza do usurário em poder de quem a puseram as despesas imoderadas, do que desesperos amorosos. O Brasil todo dia morre de desesperança generalizada, ante o desemprego, a insegurança, a criminalidade, a pandemia das drogas, a saúde pública na UTI, as escolas feitas fábricas de analfabetos funcionais, a infraestrutura em pandarecos. Ou seja: nada que não requeira muita verba para ser remediado. E cadê verba?! Na base, pois, há algo parecido com uma tragédia burguesa flaubertiana…

Ainda mais que o miserê do Tesouro, que transforma o Estado de agente em paciente, de solução em problema, deveu-se a anos de gestão inepta e irresponsável das contas públicas. Farra acentuada enormemente, no período 2010-2015, com o carnaval de intervenções, subsídios e desonerações, que foi tiro mortal no equilíbrio orçamentário. É, pois, mais do que justo atribuir aos governos da época o copyright da crise econômica consequente. Uma crise só nossa. Enquanto o mundo inteiro crescia, inclusive os vizinhos sul-americanos, o PIB brasileiro recuou 3,8% em 2015 e 3,6% em 2016. Ou, num cálculo conservador: sobre um PIB de R$ 7 trilhões em 2014, perdemos R$ 266 bilhões em 2015 e R$ 508 bilhões em 2016. Total do prejuízo: R$ 774 bilhões. Sendo certo que poderíamos, ao invés, ter crescido a taxas parecidas com as da região (digamos, 3% a.a.), o número quase dobra: chega a 1.410 bilhões! Com o que tudo o mais veio abaixo. A arrecadação de tributos na melhor hipótese caiu R$ 258 bilhões (1/3 do PIB perdido). Um rebote cruel, que gerou déficits primários espantosos, botou os juros nas alturas e potencializou o problema fiscal como o grande motor da crise. Acima de tudo, o flagelo do desemprego, a destruição líquida de quase 3 milhões de postos de trabalho. Um drama humano de proporções inauditas, uma “dor que não sai no jornal” e as cifras não medem, sabida só de quem a vive ou vê de perto.

Como se não bastasse, na mesma época o país, mais particularmente sua camada média, entra em estado de choque, quando explodem nas manchetes as revelações do Petrolão. E se descobre que a corrupção, esse sócio maldito do Estado, na era petista pulou de patamar. De atividade artesanal (roubos milionários de duplas de meliantes) passou à dimensão de grande indústria (saque metódico e multibilionário de quadrilha grande, obra do crime organizado). Sobre o resto da economia, um imposto cruel, cujo peso terá subido de alguns décimos percentuais para o entorno de 1% do PIB (R$ 70 bilhões;ano. A Lava Jato estima em mais). E tem um efeito geral devastador, de desanimar investidores, abalar os alicerces da sociedade, da fé nas autoridades, nas instituições e no futuro.

E com esses dois estigmas saímos do período eleitoral. Felizmente, a despeito do abalo e sofrimento que produziram, a própria natureza das feridas acendia a luzinha da saída. Para começar, os números botavam proporções certas em cada uma. A simples inspeção das ordens de grandeza evidenciava 1) o desastrado da gestão como, de muito longe, a causa-mor do desconcerto, e 2) toda a urgência de botar a empresa-Brasil sob uma nova administração capaz de fazer o conserto. E o país derramou-se pelas ruas pintado de verde-amarelo, reclamando a decisão que o Congresso logo a seguir tomaria. Também se via claro no descalabro da gestão o principal elemento gerador da própria corrupção. Esta, nas dimensões que alcançou, era um mal derivado (oportunista, dir-se-ia no jargão médico) e a luta anticorrupção, digamos assim, a outra perna combatente. E ficava posta a agenda, “o que fazer”: recuperar a economia e dar combate à corrupção desenfreada.

Claras também as linhas gerais do “como fazer”. Na economia, era notória a urgência de o Estado recuar das interferências no mercado e equilibrar suas contas. A corda da tributação fora esticada bem além do limite, levando o brasileiro, com 1/3 da renda per capita alemã, a pagar o mesmo percentual alemão. Reduzir despesas agora era o norte e significava desatar os nós herdados: botar gente séria à frente das estatais (e da máquina federal), cortar subsídios creditícios e de preços públicos e desonerações previdenciárias. Diminuir a gigantesca conta de juros, mediante uma ajuizada gestão monetário-fiscal etc. E fazer logo, logo, uma reforma previdenciária: frear o quanto antes, com uma mudança de parâmetros, o ritmo alucinante de crescimento da conta de inativos, não discricionária.

No combate à corrupção, haveria que dar preferência ao profilático. Esquecê-lo, sair em busca do assaltante e deixar as portas escancaradas, seria manter intactos os incentivos que elevaram tanto de patamar esse mal. E gerar para o aparelho judicial uma tarefa de Sísifo. Prevalente o espírito punitivista, ao fim se constataria não haver juízes nem cadeias suficientes… O cientista Miguel Couto, estudando nossa situação epidemiológica de cem anos atrás, definiu o Brasil como um vasto hospital. O punitivismo equivaleria a querer transformá-lo num imenso presídio. Urgente a demanda de ar respirável no espaço público, a prioridade era prevenir, com a instituição de práticas semelhantes às dos países avançados. Privatizar, reduzir a área para a ação do negocista político ou burocrático (cadê corrupção nas ex-estatais, Vale, CSN, Embaer, Teles etc.?). E no âmbito do estatal stricto sensu, instituir normas de governança, reformar a lei de licitações, embutindo mecanismos como o seguro-garantia obrigatório, contra superfaturamentos e atrasos de obras. Enfim, na área política, baratear o custo das eleições e da negociação congressual.

Na instância do castigo, exigir do aparelho judicial uma só fria paixão: a de aplicar com todo o rigor a lei contra o delinquente. Meter os corruptos no xadrez, na forma da lei. Ou seja, submeter-se esse aparelho o tempo todo à lei que o rege. Mouco às vozes da rua clamando por um Estado-vingador. Sem “criatividades” interpretativas que estuprassem a Constituição e a lei escrita.

A mudança de governação, por suposto, era tarefa do Executivo e do Legislativo. Tanto quanto a adoção de práticas preventivas. A tarefa de punir os crimes já praticados, obviamente atribuição do aparelho judicial: polícia, ministério público, judiciário. E como se andou desde então? Nesses dois anos, Executivo e Legislativo avançaram bastante em sua agenda. E não vou repetir os fatos e observações já reunidos, na Carta a Beth, publicada na Será? de 23 de março último. Apenas acrescento que o atual Congresso tomou também algumas providências, válidas para as próximas eleições, visando reduzir a demanda por recursos eleitorais (restrições à marketagem, encurtamento do período de propaganda) e o custo de negociação congressual (aprovação da cláusula de barreira). Isso e a proibição de coligações, nas eleições proporcionais (a partir de 2020), deverão ter o efeito de reduzir o número de partidos nas casas legislativas).  O voto distrital misto, aprovado, em 2017, pelo Senado, ainda precisa passar pela Câmara Federal para valer a partir de 2020. Infelizmente, a componente mais importante não tem solução em lei (nem em exorcismo): nas periferias, nas “comunidades” onde está parcela expressiva do eleitorado (25%, 30%?), o voto ainda é literalmente comprado a atravessadores, os “líderes comunitários”. Alguns, funcionários mensalistas de organizações partidárias; outros, autônomos, trabalhando por empreitada; outros, enfim, “empresários” que trocam votos por “proteção”. Aqui, a sociedade precisa avançar primeiro, o subproletariado perder sua expressão, para a prática política mudar. Paciência: infraestrutura e superestrutura…

No front judicial, começou-se bem, com a Lava Jato obtendo confissões espetaculares e a devolução de grana graúda. E levando a um sentimento generalizado de admiração e apoio ao grupo de jovens servidores que compunha a força-tarefa, o que mitigava o trauma inicial. Mas aí ao drama burguês sobrepôs-se um outro, esse de um trágico mais antigo e mais fundo, anterior a todo Flaubert. Trágico grego. Refiro-me ao completo alheamento, o “nem-aí-ismo” (o je-m’en-foutisme) da população para algo de seu interesse vital: o conserto (também no aspecto da moralidade), a cargo de governo e Congresso, do enorme galeão avariado da economia. Uma metade, alojada principalmente nos andares de baixo, não pensa em conserto nenhum. Quer de volta o tempo em que viajava de avião e adquiria carros usados e eletrodomésticos (no crediário). E não vê a hora e vez do repeteco… A outra metade, que inclui a camada mais alta, deixou-se vitimar pela fatal, irrefreável paixão punitiva liberada pela Lava Jato. A solução é caçar e punir corruptos e pronto! A economia dá sinais claros de recuperação, o setor público, de saneamento e  nada disso interessa.. Só denúncias, delações, descobertas de contas bancárias, condenações, prisões envolvendo gente política. E o ti-ti-ti subsequente.

O fato é que a Lava Jato foi muito além, desbordou. Virou, no “profano”, um superpoder que nenhum outro ousa desafiar; e, no “sacro”, uma nova seita radical, que promete regenerar a política pela antipolítica: mediante a sistemática destruição, via desmoralização e criminalização, da atual (“velha”) classe política. Tem seu apostolado sobretudo na jovem guarda de policiais, procuradores e juízes federais encarregados da operação. Imbuídos de uma espécie de tenentismo togado, sobre o qual já falei, o comportamento deles, tal qual o dos tenentes de 22, parte da sensação de que, na área pública, em especial na esfera política, tudo está podre (os tenentes de outrora diziam “carcomido”)[1]. Daí seu espírito salvacionista e antipolítico. E não só a gana punitiva, mas também a escalada da indisciplina e das liberdades com a Constituição e as leis vigentes. O que em parte chegou ao próprio STF. E produziu a triste situação atual. Os homens da lei, hoje, a pretexto de punir a corrupção, acumulando uma montanha de ilegalidades e absurdos. O tempo todo na mídia e nas redes sociais, rompendo com o velho e abençoado costume de “falar nos autos”. E, não abrindo a boca que não seja para levantar suspeitas e acusações ligeiras contra políticos[2]. Ou insultar autoridades superiores que “não se alinham” e defender, na teoria e na prática, ideias que brigam não apenas com a Constituição e as leis vigentes, mas com a noção do civilizado: a presunção de culpa e a prova negativa, o processo sumário e as provas ilegais, as ciladas armadas por agentes do Estado, a detenção sem condenação definitiva… No fundo, parecem propor uma barganha: nos dar moralidade ao preço do Estado de Direito. Barganha inaceitável, até porque, no final, não teríamos nem moralidade, nem Estado de Direito. Só barbárie.

Na verdade, falta a essa gente uma ampla compreensão do humano, que requer um olhar não só para o comum e o abjeto. Também para o incomum e até mesmo para o ultra-humano[3].

Esses planos do humano são possibilidades presentes em todos os instantes e lugares e só a admissão deles propicia uma compreensão profunda do fenômeno da moralidade social. No terreno político, nem falo de certos devotamentos tocantes que vislumbro, hoje. Lembro o começo dos anos 80: parte da população, sobretudo a elite, cansada do autoritarismo que se infiltrara por todos os poros; e os militares cansados do poder direto, parecendo querer, por um período, tirar umas férias, governar através de procuradores civis, que lhes prestassem contas e batessem continência. Cansados, mas sem ter perdido nenhuma guerra. Nem o moral, o poder se olhar no espelho e na cara do povo. E a prova factual de que esse sentimento tinha correspondência no outro lado é que, desde então, nunca se viu (eu pelo menos) uma só pesquisa que não aponte as Forças Armadas como a instituição mais respeitada na sociedade. Derrotados, no sentido bélico, psicológico e social, quem estava eram os militares argentinos, depois do episódio trágico-grotesco da guerra das Malvinas. Daí a redemocratização brusca deles e os processos contra os chefes do antigo regime. Alguns dos quais terminaram morrendo na prisão.

Os líderes civis da abertura (Petrônio Portela, Ulisses, Tancredo, Sarney, Marco Maciel, Montoro, Covas, FHC, Fernando Lira, Thales Ramalho etc.), esses anti-heróis da velha política, sabiam ler a escrita. E leram corretamente. E tiveram a grandeza política de fazer a transação: engolir por si e por seus concidadãos a saliva grossa das mágoas e frustrações, esquecer pisaduras e violências passadas, e convencer os militares de uma alternativa mais cômoda para eles e melhor para a sociedade, a experiência da democracia plena, sem tutela.  Sentaram à mesa, aceitaram a anistia, assinaram garantias contra revanchismos. E pelo Colégio Eleitoral nos chegou Tancredo. Sem um voto popular e um dos presidentes mais queridos da história. E veio a posse não contestada de Sarney. E a nova Constituição e, depois, trinta anos de democracia e muito avanço, em meio aos percalços. E desde então, uma ou outra voz da revanche que se levante, o país não escuta. Peça caprichada de Engenharia política. E também de superior moralidade…

Já imaginaram esses bravos, esses góticos, esses puros lava-jatistas numa tarefa assim? Ou frente a qualquer problema que requeresse negociações pacientes? Vociferantes e intransitivos, eles não iriam querer saber de conversa, muito menos de negociação política, para eles algo afim de tipo penal. Tal qual pensavam os tenentes fardados de um “casaca” perrepista, para eles fala polida e sorriso de aeromoça são sintomas, não de civilidade, mas de falta de caráter. E iam logo querer “argentinizar” a tarefa… E eu que ouvi, na época, meu compadre e confrade Vieira, a propósito de alguns radicais, exclamar com ar de Isaías: ai do homem político de quem não se recorde o sorriso! E, grandiloquente, nomeava Hitler, Mussolini, Stálin… Tinha razão, a antipolítica poderia ter sido a continuação da ditadura…

Mas como foi que a Lava Jato conquistou tanto? Que feitiço foi esse, que lembra obra de uma deusa zangada de Homero? Todos sabemos que, na mídia, a oferta de fatos é uma seleção que busca atender a demandas várias. Entre estas, é fortíssima a demanda de maravilhoso e de escandaloso, duas drogas que se apresentam como específicos poderosos contra um mal insuportável para os humanos: o taedium vitae. Com elas, cria-se o “acontecimento”, gera-se o ti-ti-ti que recheia as pautas, aumenta tiragens e audiências, movimenta as redes, melhora os acessos, bota lenha na conversa.

Daí que sobre os atos e fatos há que se formar a opinião (ou reformá-la, a própria seleção já é opinião). Se necessário, corrigir-lhes as proporções, re-hierarquizá-los, reinterpretá-los. Sobretudo pensar as consequências, antever dificuldades e perigos. Dessa tarefa não há sociedade civilizada que prescinda, pois é preciso manter sempre robusta uma opinião de centro, marcada pelo realismo e pelo senso de direção e dos valores. E para isso há, na mídia, a “página” opinativa, a cargo de intelectuais, (jornalistas profissionais, experts ou acadêmicos). Entre os antigos hebreus, era a missão primordial dos profetas.

Ora, no Petrolão, o escandaloso foi dar nas praias do maravilhoso… E isso, além do impacto direto sobre a população, tirou do prumo a intelectualidade de centro (não falo dos radicais de direita ou esquerda), mexeu com seu senso crítico. E eis que nossos “profetas” debandaram en masse, com poucas exceções viraram novas-seitas. Uns por respeito humano (como diziam os padres-mestres), outros por conveniência, ou por falência mental. Deixaram de pensar em direção e consequências e, das tribunas da mídia, a pretexto do combate à corrupção, passaram a incitar o público a aplaudir as “mensagens de Curitiba”. E a destruição da classe política e da ordem legal e institucional.

O governo atual, que a maioria ajudou a nascer, o lógico era tê-lo ajudado a governar, mostrando à população seu inegável saldo de acertos. Ao invés, passaram a contribuir para enfraquecê-lo, esquecendo os acertos e dando crédito e ressonância a toda denúncia contra ele, por mais inverossímil e maldosa. E, agora que conseguiram, o chamam de fraco. E quem perde é o país. Mais apoiado pelos formadores de opinião, o governo estaria mais forte, a economia, mais robusta, a população, menos rançosa e mais esperançosa. Ter-se-ia, provavelmente, aprovado uma medida crítica e inadiável, como é a reforma de Previdência. E reinaria menos incerteza quanto à agenda deste ano, que, além das reonerações previdenciárias, pega, basicamente, ações privatizantes: 1)  executar uma decisão já antiga (creio que do 2o  governo Lula) de transferir ao setor privado até fins de maio as seis distribuidoras estaduais em mãos da União (e que, segundo o Estadão de 19/04, comeram R$ 3,7 bilhões dos cofres públicos nos dois últimos anos); 2) fazer a privatização da Eletrobrás; 3) concluir o processo de arrendamento dos principais aeroportos; e 4) sob a égide da nova lei do pré-sal, fazer um novo leilão de blocos. Em vez disso, os investidores estrangeiros deixam o país e o dólar sobe. E as projeções são revistas para baixo.

Aponto o problema dos formadores de opinião, mas não digo que ele seja tudo. É só a parte que nos toca… Não se diga, de outro lado, que a tarefa de alimentar uma grande corrente de opinião favorável à agenda proposta seria inútil. Que, em ano de eleições, o Executivo desistiria. Que o Congresso derraparia. O êxito do governo, a aprovação de sua agenda, se refletiria na economia e aumentaria enormemente as chances eleitorais de uma alternativa centrista, de continuidade da atual política.  E o trabalho do último biênio confirma o que gostava de repetir o ex-deputado Ibsen Pinheiro: “o Congresso termina fazendo o que o povo quer”. E até mais: dada uma boa interlocução com o Executivo, o que ele não quer (reforma trabalhista) e o que aos próprios parlamentares não interessa (Lei das estatais).

Mas prevaleceu o lava-jatismo sans bornes e eu pergunto aonde ele está nos levando. A um impasse colossal. O país feito um bêbado num beco, de todo perdido o senso de equilíbrio e de direção. Ninguém pensando nas consequências. E Ética é coisa profética: é pensar nas consequências. Donde a imoralidade objetiva desses moralistas (de cuja seriedade de propósitos não duvido). O efeito de seu “nem-aí-ismo” é todo dia recriar a percepção de terra arrasada, de país sem saída (e no campo político, vale o esse est percipi).  Em pé, indenes, sobraram os extremos sectários, potenciais herdeiros da “construção” lava-jatista. E aí, que fazer? Recitar com Valéry que os acontecimentos me entediam? Escrever crônicas soturnas como um samba-canção de Antônio Maria? Rezar por um milagre? Eu não acredito, embora eles existam… Ou, como o poeta, querer, presto, o Dia de Juízo para saciar minha sede de teatro? Melhor mirar meu jardim. Não vejo Esperança, mas vejo o verde.

Poço da Panela, Recife, abril/2018

 

[1]Seja dito de passagem sobre o tenentismo original: o estranho é que ele brotou justo na época em que, segundo Jorge Caldeira, o Brasil mais cresceu em sua história. Quando, graças nomeadamente à energia nova dos filhos dos imigrantes europeus, orientais, judeus e levantinos, se usinavam, sobretudo em São Paulo e nos estados do Sul, pedaços modernos de Brasil. Impulsionado por esse vento inovador, o movimento modernista nos deu no campo cultural uma 2aIndependência, da qual somos netos. E Murilo Mendes a começar seu registro poético com um poema-piada, uma paródia do antigo, da joia canônica Canção do Exílio(“ai quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão de idade”). E o jovem Drummond a rebelar-se em verso contra a macaqueação de padrões europeus (depois de confessar: “eu também já fui brasileiro, moreno como vocês”, concluía: “de todas as tolices, a maior é suspirar pela Europa”).

Isso os tenentes não enxergavam e, antipolítica gerando antipolítica, eles terminaram virando o braço armado da Revolução de 30, que nos rendeu, em vez da modernização da política, 15 anos de autoritarismo. Tempos depois, tornados generais, eles pilotaram o regime militar de 1964, sob cujo guante os de minha geração vimos passar nossa irrepetível mocidade… Por duas vezes tentaram salvar o Brasil. De que, de quem?…

[2]“O delator X apresentou uma lista de 1.100 políticos a quem ele fez doações”, diz um procurador. E, junto, a mensagem explícita ou subliminar: “todos metidos em corrupção, safadeza”. Como se, sendo os partidos entes não-mercantis, que nem fiam nem tecem, independessem os candidatos de doações para suas campanhas eleitorais. E, válida a presunção de inocência, não fossem as doações lícitas e normais, até prova em contrário. Prova por que não se espera para falar.

[3]Por exemplo, para realidades-limite como o heroísmo, como a santidade, que vêm de repente, por obra das circunstâncias agindo sobre o barro humano (dirão os crentes, por graça de Deus). Agora mesmo, não faz muito, ganhamos uma linda santinha brasileira. Uma dona de casa entre tantas, obscura professora de uma creche em Janaúba, nos Gerais de Minas, que, um dia, de si se esqueceu e deu a vida em duelo contra um incendiário ensandecido, para salvar as vidas de 20 bebês sob sua guarda. Santa Heley de Abreu Batista é seu nome pouco celebrado.