Teresa Sales

Os inválidos de Pieter Bruegel.

Os inválidos de Pieter Bruegel.

22 de janeiro de 2014

Desde junho do ano passado, o Brasil está mais para a sociedade civil do que para a política. Refiro-me a política com p minúsculo, essa que aparece no cotidiano da mídia, dos inumeráveis partidos grandes e nanicos falando a mesma linguagem dos acordos espúrios e da contagem do tempo de televisão em anos eleitorais. A política da corrupção, onde a prisão dos mensaleiros ainda não foi um marco para inibir a continuidade dessa praga que tomou conta de todas as instâncias de poder, espraiando-se pelas empresas comparsas do governo.

Já a sociedade, que parecia deitada em berço esplêndido, lamentada pelos saudosistas das lutas pela derrubada da ditadura que costumam só vê-la pelo retrovisor, surgiu com energia insuspeitada de onde sempre flui: da juventude. O inesperado de suas manifestações públicas foi uma surpresa tão grande, talvez por causa do engessamento do pensamento social na Universidade, que deveria ser o principal lócus da inteligência do país, em conexão com a sociedade.

Estamos na hora dos sociólogos. Não para olhar a bola de cristal e antever o que vai acontecer, tal como fazem os economistas, e analisar depois porque sim ou porque não resultou no previsto. Mas para usar as ferramentas metodológicas adequadas para analisar a sociedade em mudança. Tarefa sem dúvida muito difícil, diante da complexidade da sociedade e da queda de paradigmas, que até outro dia era o marxismo.

Três longos parágrafos de nariz de cera para chegar ao assunto desse artigo: os rolezinhos nos shoping centers. Assim como as manifestações de junho de 2013, não por acaso surgiram em São Paulo. (Já dizia um de meus entrevistados, migrante nordestino morando em São Paulo: “São Paulo é o coração do Brasil, é ou não é?” Agreste, Agrestes, 1982:187). A cidade de São Paulo, menos pelo lado de ser o principal polo industrial, de serviços e de riqueza do país, e mais por ter atraído migrantes do Brasil inteiro, além de outros países, formou uma sociedade rica em contradições sociais.

O resto do Brasil convive mais com o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda do que a cidade de São Paulo, onde os preconceitos não apenas contra o negro, mas contra os nordestinos, preconceitos de classe, são mais acirrados. A crueza da cidade, na insuficiência dos serviços públicos saúde, educação e transporte, atinge um público mais extenso do que os excluídos socialmente. Daí as dimensões tomadas pelos movimentos sociais do ano passado.

Os rolês adolescentes da periferia são, contudo, outra coisa. Pelo simples que são (um passeio aos shoppings para fazer novas amizades e se divertir, até então privilégio apenas de mauricinho e patricinhas) à repressão policial aliada aos gerentes dos shoppings, são a expressão mais acabada da discriminação de classe, que, naquela cidade, está associada não apenas à raça, mas também aos migrantes da periferia, os “baianos”. No SPressoSP, Erminia Maricato e Gabriel Medina foram taxativos ao classificar a repressão como um escancaramento do ideal que permeia a sociedade paulista: classista, racista e higienista.

Para finalizar, faço minhas algumas das lúcidas considerações de Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. A melhor análise, a meu juízo, sobre esse novo fenômeno social que se espraia de São Paulo para o resto do país.

“A questão não é mais, apenas, a desigualdade social clamorosa, a intensa exclusão dos mais pobres, aquilo que Cristovam Buarque chama, há décadas, de ‘apartheid social’. Até aí, trata-se de fatos da realidade. A questão é que, desde a democratização de 1985, essa desigualdade foi-se tornando injustificável e intolerável.

Um mundo acabou. Durante décadas, nos protegemos dele atrás de grades – no prédio ou no shopping, ou as grades simbólicas da escola, do hospital e dos carros melhores. Isso não tem mais como durar. A boa nova é que a exigência de que isso mude, seja em junho de 2013, seja em janeiro de 2014, tem-se feito dentro da lei e com nenhuma ou pouquíssima violência. Mas o tempo urge. A brincadeira de injustiça social terminou. Quem quiser continuar jogando esse jogo só vai gerar problemas – para si e para os outros.”