Clemente Rosas

Sua origem remonta aos tempos em que as praias da Paraíba eram cobertas de imensos coqueirais, com algumas aldeias de pescadores de permeio.  E a principal fonte de renda dessas propriedades era mesmo o coco, já que os areais não são propícios a culturas agrícolas temporárias ou à criação de gado.  Cabia, portanto, uma comemoração ao final das colheitas, que mobilizavam muitos praieiros para tirar, descascar e transportar os cocos.  Eram as festas de “samba de coco”.

Com o tempo, o nome do folguedo, que envolve cantoria e dança, ficou reduzido à expressão “coco”.  E foi melhor assim, porque o seu ritmo nada tem a ver com a cadência do samba dos morros cariocas.  Está mais próximo dos forrós nordestinos, mas com batuque e coreografia diferenciados. Extremamente rústico, seus instrumentos se limitam a um zabumba e um caracaxá.  Dança-se solto, em roda ou com livre deslocamento, marcando-se o compasso sempre com o pé direito.  Inocentes umbigadas eventuais também podem ter lugar.

Os temas das canções são passagens de vida dos litorâneos: manobras no porto, pesca, navegação, coisas do mar e da terra.  Mas há espaço também para o cômico e o romântico.  Algumas poucas mereceram gravações de cantores populares, como Jackson do Pandeiro.  Mas a maior parte ficou apenas na memória de alguns veranistas, como os de minha família, e tendem ao esquecimento.  Daí a ideia de registrá-las aqui, “ad perpetuam rei memoriam”.

É de se destacar que, em minha terra, a dança chegou aos terraços e aos pavilhões da classe média, diferentemente de Pernambuco. Nesse Estado vizinho, onde morei por muitos anos, só ouvi falar dela quando uma letrinha de duplo sentido foi popularizada por Dona Selma do Coco (depois seguida por Dona Aurinha).  A canção falava da fuga de um columbídeo, e terminava com o estribilho: “pega, pega minha rola!

Na Paraíba não foi assim.  As moças e rapazes da sociedade dançavam coco.  Minha mãe e tias foram graciosas dançarinas, seguidas por filhas, filhos e netos.  Com elas aprendemos muitas letras, como também com os pescadores Pititinga e João Flor. Elas variam de forma:  simplesmente narrativas, à maneira de diálogo, ou com refrão ou coro.  Algumas vão aqui reproduzidas.

Com temas portuários

Santa Maria lá fora
Os canoeiro remando
Lourenço tá maginando
Mané Fulô não vem cá
Sustenta o leme no meio
Que é pra não perder o tino
Que eu ouço a voz do menino
Chamar do lado de lá
O mestre é Mané Fulô
Toda manobra ele faz
E o dono é Doutor Jaime
Filho do Governador

Na barra entrou
Dois navio de guerra
Não içou bandeira
E nem salvou à terra

Maria, acorda João
Que o “Alemão” vem lá fora
O “Alemão” é paquete
Não entra fora de hora

Românticas

Olha a rosa amarela, rosa
Tão bonita e tão bela, rosa
Iaiá, meu lenço, ô iaiá
De eu me enxugar, ô iaiá
Nessa despedida, ô iaiá
Que me faz chorar, ô iaiá

Morena, fulô da noite
Ô fulô tão maravilhosa
Quero ver a pisada mansinha
Pra matar as invejosa

Ô menina do dente de ouro
Parece um tesouro a boquinha dela
Se eu pudesse, tivesse dinheiro
Eu ia a Barreiro e casava com ela *

*Barreiros, cidade da Zona da Mata pernambucana

Viuvinha não chore não
Viuvinha não vá chorar
Viuvinha, não chore não
Que seu amor já vai voltar

De pesca, mar e tempo

Camarão é peixe bom, camarão
Quando leva seu tempero, camarão
Seu azeite, seu vinagre, camarão
Sua pimenta de cheiro, camarão
Eu botei a rede n’água, camarão
Comecei a lancear, camarão
O peixe que veio na rede, camarão
Foi o camarão do mar, camarão

Compadre, que vento é esse
Que esse vento não navega
Às quatro horas da tarde
Avistei Ponta de Pedra *

* Ponta de Pedras, praia pernambucana

Canoeiro acende a vela
Quando vai de mar afora
Quero ver a lua nova
Quando vai rompendo a aurora

A chuva choveu, paraná
A goteira me molhou, paraná
Tá chovendo, tá relampeando, paraná
Tá trovejando nas ondas do mar, paraná

De plantas e bichos

Cajueiro abalou
Abalou, abalançou

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Passarinho da lagoa se tu queres avoar
Avoa, avoa, avoa já
O biquinho pelo chão e as asinhas pelo ar
Avoa, avoa, avoa já

Facécias

Ô papai, mamãe
Cadê Maria, meu Deus?
Comeu farinha do barco *
Caiu pra trás e morreu

* Farinha transportada em porões de barcos, quando havia falta de abastecimento local, que facilmente azedava

Dona Maria, olha o boi!
Dona Chiquinha, cadê?
Se não tem pau que eu me assuba
Vou me valer do dendê *

* Palmeira com o tronco cheio de espinhos

Gravados

Ao menos dois cocos foram gravados,  creio que por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro

Oi, responda esse coco, com palma de mão
É coco do Norte, nunca foi baião

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Ai, nesse coco eu não vadeio mais
Apagaram o candeeiro, derramaram o gás

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E para terminar, eu e meu irmão Mateus constatamos, mais recentemente, a entrada do veículo motorizado no universo dos letristas de coco:

Meu caminhão Chevrolet
Pra carregar e vender
O motor dele é V-8
Vou comprar um pra você

Sinal dos tempos.  Hoje só resta um grupo de coco em Cabedelo: o do mestre Benedito, já falecido. Sua viúva e herdeiros lhe deram continuidade.  E, para prestigiá-los, meu irmão os convidava, toda passagem de ano, para uma apresentação em sua casa.  Morto também meu irmão, minha cunhada e sobrinhas mantiveram a tradição.

Um zabumbeiro cego, alguns jovens revezando-se no caracaxá, uma morena esbelta liderando os movimentos, as velhas puxando a cantoria, aí vamos todos, no terraço e no terreno arenoso em frente à casa, em volta de uma amendoeira, marcando os passos do coco.  Para descansar, alternamos com uma ciranda, de compasso mais lento, mãos dadas, reproduzindo o vai-e-vem das ondas na praia. Não deixa de ser gratificante, para nós e nossos convidados.

Observei, no começo deste texto, que o folguedo só se popularizou em Pernambuco por uma letra maliciosa, que falava de uma rolinha fugitiva, a ser capturada.  Esse recurso – o duplo sentido das canções, muitas vezes resvalando para o mau gosto – tem feito o sucesso de cantores nordestinos como Genival Lacerda, “o senador do rojão”.  E os sucessores do mestre Benedito parecem ter aderido a essa prática, como se quisessem dizer: “nós também sabemos fazer isso”.

Se a fórmula contribuir, de algum modo, para a sua notoriedade, acho que poderíamos perdoá-los.  De qualquer maneira, cumpro aqui o compromisso que assumi, comigo mesmo, de não deixar que a memória de um folguedo tão autenticamente paraibano venha a apagar-se, com a chama das nossas vidas.  E reproduzo, em despedida, a última composição do Grupo, na linha ora comentada.

Canta a puxadora, “a palo seco”:

Em Cabedelo tem uma cobra
Fazendo manobra, dando carreira em mulher
Na casa dela tem um A e tem um D
Só seu Geraldo é que sabe
O ninho da cobra onde é

E entra o coro, com o batuque:

Ai, que rolo de cobra, ai que rolão
Ai, que rolo de cobra, ai que rolão
Ai, a cabeça da cobra, ai que rolão
Ai, a linguinha da cobra, ai que rolão

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