Fernando Dourado

Muro das Lamentações.

“Será que eu poderia viver em outro país? Provavelmente sim, mesmo porque os judeus estão acostumados a morar na casa alheia, se é que podemos dizer assim. Trata-se de uma capacidade de adaptação incomum na maioria dos povos ocidentais, embora também seja verificável na diáspora armênia, indiana e chinesa. Isso dito, acho que minha arte morreria fora das fronteiras desse país. Posso perfeitamente ir filmar no Canadá ou na Eslováquia. Mas é para cá que tenho que voltar. É na noite de Tel Aviv que estou em meu elemento. Ou no mercado de Mahane Yehuda, comprando frutas com minha irmã. No inverno, gostamos de ficar em família e muitas vezes alugamos um Zimmer no vale do Hula. Meu marido leva as crianças para passear na estrada e nessas horas vejo as rochas nuas, o céu de azul pristino e fico na sala de estar a ler roteiros. Perto do meio-dia, tomo uma limonada caseira e vamos até Kiryat Shmona, ao restaurante do cruzamento, onde Benji come hambúrguer de cordeiro e lambuza as batatas fritas com ketchup. Essa noção de aconchego é intransferível. É da diversidade de origens, de vozes, de sotaques e de feições que eu alimento meu ofício. Se pensar bem, teria material para trabalhar mesmo se vivesse os tais 120 anos da lenda. No fundo, tudo aqui é possível. Por absurda que uma história pareça ao mundo, você vai encontrar uma similar e verdadeira em Israel”.

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“Quem me conhece, sabe que estou longe de ser um judeu minimamente religioso. Já passei muito feriado de Yom Kipur na casa de praia, fazendo churrasco e namorando. Isso diz tudo, não é? No entanto, tenho observado um fenômeno interessante. É o seguinte: meus filhos estão em idade universitária e sinto que preciso incutir neles um senso de perseverança, uma vontade de superação e de dar à vida uma marca autoral. Como os três têm mães diferentes, que nem sempre comungam do mesmo mundo, vi em Israel uma forma de lhes dar uma noção de pertencimento. Um deles fez o programa Taglit ano passado e parece que voltou mais competitivo, quase empolgado. Não sei bem o que aconteceu por lá porque o cara é fechado como a mãe. Mas o que quer que tenha sido, foi bom. O segundo vai na mesma pisada. Na verdade, ele se entusiasma mais com as questões militares, com a geopolítica, e a escalada nuclear iraniana. Por que não, se isso deu tangibilidade ao vínculo? O terceiro adora fabular em torno de Davi contra Golias. Em suma, funcionou. Quando adolescente, eu estive uns meses num kibutz do Negev e confesso que adorei. Nunca namorei tanto na vida. Ainda hoje tenho amigos que fiz naqueles meses de camaradagem ao pé da fogueira. Enfim, Israel deu muito mais a mim do que eu ao país. Para os judeus em geral, é um baita cartão de visita, além de ser um instrumento pedagógico de vida”.

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“Eu acho Israel e os judeus que moram lá, a gente mais arrogante do mundo. Nem os sauditas chegam a tanto. O mais irônico é que essa mesma gente não se dá conta das contradições em que incorre. É voz corrente da propagada que se trata da única democracia na região. E no entanto, pais de família palestinos morrem de infarto antes dos 40 anos por conta das humilhações que lhes são infringidas. Veja bem, se um pobre diabo que nada tem a perder, lança um míssil de Gaza sobre o descampado, os israelenses bombardeiam com violência aquele formigueiro humano, e pouco importa que o mundo aponte a reação como desproporcional. Por causa de Israel, nós, os cristãos libaneses, não podemos visitar Jerusalém ou Nazaré, o que seria uma aspiração muito legítima, concorda? Aliás, é lá que estão enterrados meus bisavós. Temos não somente restrições em ir até lá como talvez fossemos vistos com suspeição por nossos patrícios ao regressar. Todo mundo sabe que o Líbano não é fácil. Veja, estudei com judeus nos Estados Unidos e até de festas religiosas eu já participei em New Jersey, na casa dos pais de Bob Weissbrot. Dá para fazer uma distinção entre judeus em geral e israelenses? Certamente. Digamos que eu nada tenho contra os primeiros, mas só posso ter muita coisa contra a maioria dos segundos. Posto assim, acho que fica mais fácil definir o que sinto”.

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“Israel pra mim é mesmo a terra do leite e do mel. Afinal, meus pais se conheceram num kibutz nos anos 1950, e só mais tarde vieram para o Brasil, quando eu tinha 8 anos, e eclodiu a “Guerra dos Seis Dias”. Pois bem, meu pai trabalhava na ordenha, que na época ainda não era mecânica, e minha mãe acompanhava o irmão na coleta do mel de abelha. Fui alfabetizada em hebraico, mas depois que chegamos a Curitiba, o contato com a língua foi escasseando. Quando volto lá para visitar a família, parece que recupero um pouco do vocabulário perdido. É claro que tenho uma conexão emocional forte com o país, mas prefiro evitar o tema em roda de amigas. Muitas delas descendem de sírio-libaneses e, na verdade, me identifico mais com elas do que com as judias que conheço de uma vida. As companheiras da Wizo me chamam de brincadeira de “a Palestina” e perguntam se pretendo jejuar no Ramadã. Daí que eu e Salma Zugaib, quase uma irmã, evitamos tratar de política, mesmo quando estamos a sós. Hoje somos todas avós e nada une tanto duas pessoas quanto a condição de avó, pode acreditar. Pouco importa que ela seja uma daquelas iranianas, mesmo das mais radicais. Uma avó vai sempre entender o que a outra está sentindo. Se faço questão de voltar a Israel? Por que não? Mas preferia agora conhecer a Croácia ou a Rússia. Para tudo na vida tem limite”.

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“Quando você me deu um número fixo de linhas para falar de Israel, francamente achei que era muito espaço para tão pouco a dizer. Como bom engenheiro, eu podia ser taxativo: gosto de Israel porque é a pátria dos judeus por excelência. Sendo eu próprio judeu, está explicado. Mas como eu tinha que preencher um quadradinho inteiro na tela do computador, comecei a divagar. E cheguei à conclusão que poderia escrever várias páginas a respeito. Não porque minha experiência conte tanto. Fiquei 30 anos sem botar os pés lá e garanto que isso não me fez qualquer falta. Mas Israel se tornou importante para meus filhos e isso muda tudo. Ilana está morando em Tel Aviv há dois anos e todo dia diz que nunca foi tão feliz. André também se empolgou com agricultura orgânica e virou uma espécie de pioneiro versão 6.0 perto de Afula. Para meus pais, que já nasceram no Brasil, a criação de Israel foi determinante na vida deles. É como se tivesse havido um antes e um depois. Ainda hoje eles lembram o que faziam na data. Sempre fui o mais desencanado mesmo porque vi muitos colegas emigrarem pelo simples fato de que, cá entre nós, não tinham dado certo por aqui e eram rematados medíocres nos estudos. Por incrível que pareça, Israel me pareceu durante anos um refúgio de perdedores, onde não era vergonhoso dirigir táxi. Hoje é a nação startup e o escambau. Resumo o que sinto assim: se é bom para os meus, então está ótimo. Mas meu lugar é no Brasil”.

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“Francamente, a situação dos judeus aqui na França não está nada boa. A islamização do Hexágono é iminente. Ciente disso, atendi o pedido de minha mulher e nos instalamos próximos a Cesareia, numa comunidade cheia de judeus franceses. Chegamos lá até felizes, admito. Mas nenhuma alegria foi maior do que a de voltar para a Europa e retomar nossa pequena vida parisiense. Agora que tudo ficou para trás, posso dizer o que achei. Poucas vezes vimos gente tão rude, tão sem polimento. O fato de sermos todos judeus, não deveria permitir que eles se permitissem me tratar com a informalidade com que se dirigem ao quitandeiro do quarteirão. Convenhamos, já passei há tempos dos 50 e não tenho uma formação qualquer, pelo contrário. Imagine que Macron foi meu aluno. Com que direito um rapaz arrogante nos ridicularizou quando as palavras me faltaram no hebraico e apelei para o francês? E olhe que já nem falo do calor infernal, quase saariano. É claro que eu fingi que ia tudo bem até que Fanny tomasse a iniciativa de propor o regresso. Se fosse o contrário, ela se vitimizaria cada vez que os celerados profanassem um de nossos cemitérios na Alsácia. Quando ela admitiu que tinha o mal du pays, me fiz de rogado para aquiescer, como todo bom negociador, e Israel agora é página virada. Uma coisa é admirar e outra bem diferente é querer pertencer. Mazal tov pelos 70 anos, é o que desejo. Eles lá e eu cá”.

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“Cheguei aqui me sentindo um pouco deslocada, tão à parte da sociedade quanto quando vivíamos no Marrocos. Então casei com um chileno asquenazita e meus filhos nasceram. Quando já não precisavam tanto de mim, fui concluir minha formação na universidade de Beersheva e as coisas foram melhorando. Meu marido sempre teve inclinações pelo que antes se chamava de esquerda. Eu era adolescente quando o Likud chegou ao poder e, coincidência ou não, percebi que nós os sefarditas começávamos a ter mais voz. Era isso que meu pai dizia pelo menos, e deploro que tenha morrido jovem e que não tenha visto a retomada da dignidade que dizia ter conhecido em Tanger. O que posso dizer é que nos tornamos uma nação mais forte e determinada quando os teóricos do socialismo caíram fora. É claro que chorei quando Yigal Amir assassinou Rabin. Tali, minha filha maior, urrava de dor e ainda era tão novinha. Que mãe não fica despedaçada ao ver os filhos em semelhante estado? Mas naquela noite, quando Aron veio para a cama, depois do funeral, ele me disse: “você não está nem um pouco surpresa, não é?” Então eu respondi que o mais fascinante no casal que formávamos é que ele sempre adivinhava meus pensamentos e eu os dele. Israel dá essa liga, sabe, um senso de cumplicidade até quando a diferença é profunda. Os chineses dizem: mesma cama, sonhos distintos”.

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“Eu acho Israel um país nocivo ao mundo. Não era, mas ficou. O fato de sermos únicos alimenta um narcisismo neurotizante. Aliás, todo mundo aqui descende de neuróticos. Pode ver que as pessoas preferem fazer ironias a sorrir. Você já viu alguém gargalhando aqui? Ninguém venha comparar nossos modos crispados com as risadas puras dos tailandeses ou dos mexicanos. Não sei se sou muito diferente da média da população, mas o fato é que fechei o consultório e fui passar uns anos na África, orientando quem realmente precisava de ajuda em primeira mão, para as necessidades mais básicas de sobrevivência. Quando voltei, encontrei tudo igual. Na verdade, sonho em viver na Nova Zelândia ou no Canadá. Sou de extremos, não é? Acho que as experiências que vivi no Líbano foram muito negativas. Vi o que não deveria ter visto e celebrei o que não deveria ter celebrado. Em Israel, exalo um cheiro que não me agrada. É como se estivesse fedendo, entende? Difícil de explicar. Jamais casaria com uma sabra arrogante que sopra fumaça como chaminé e tem um olhar de magarefe romeno. Minha geração viu acontecer essa divisão simplória das pessoas entre ganhadoras e perdedoras. Integro o segundo bloco com orgulho, se quer saber. Desprezo esses manipuladores analfabetos que nadam em dinheiro e fazem negociatas à noite com os barões do Agudat Israel”.

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“Se eu gosto de Israel? Eu gosto mais das perguntas bem feitas, meu caro. Invertamos: você gosta da Nigéria? Sim ou não? Seja qual for sua resposta, eu posso intuir o que está por trás de cada uma das versões. Se sim, logo afirmativo, eu poderia dizer que você tem afinidade com a África, com afrodescendentes e com os oprimidos. Pode ser? Se for negativa, ou seja, se você admite não  gostar da Nigéria, imagino que você seja um crítico das cleptocracias petrolíferas e que o raciocínio também vale para Angola ou para o Kwait. Mas veja bem, não vou querer cascavilhar sua subjetividade. Assim como não acho justificável que você queira percorrer os caminhos da minha. Mas já que provocou, vamos lá. Você já ouviu falar da Bessarábia? Do pogrom de Kishniev? Meus avós escaparam de lá ainda crianças. No final, vieram para o Brasil. Estavam acostumados ao padrão provinciano de convívio do Leste da Europa. Vá à Moldávia e você verá que até hoje é um lugar travado. Livres para exercer suas tradições, os descendentes foram nascendo. Quando o estrago da Guerra foi metabolizado – se é que foi, e se é que será um dia -, Israel assomou como um marco de libertação. Adolescente, fui visitar o país e passei dois meses em Tiberíades. Fui a primeira pessoa da família que botou os pés ali em séculos. Agora me formule de novo a pergunta se gosto de Israel e, se quiser, responda-a você mesmo”.

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“Os filmes estão sempre mostrando situações em que os judeus voltam às suas antigas casas munidos de chaves enferrujadas e são esnobados pelos novos ocupantes. Isso se aplica à Turquia e à Espanha tanto quanto à Hungria ou Ucrânia. Depois da Guerra, quantos não tiveram até obras de arte confiscadas e roubadas por moradores oportunistas que traíram laços de amizade que, bem ou mal, existiam? Agora veja o que aconteceu à minha família e a milhares de árabes que viviam na Palestina. Um belo dia, há 70 anos, deixamos para trás as casas que nossos ancestrais haviam construído e as árvores frutíferas que eles haviam plantado. Ano após ano, década após década, resultaram vãos nossos esforços de rever as propriedades, e já nem falo de reavê-las, o que é impossível. É justo que eles façam com nossa gente o que seus algozes europeus fizeram com eles? Mas não pense que os odeio. Longe disso. Recebo turistas aqui em Belém que me chegam pelas mãos de guias israelenses com quem falo ao telefone de hora em hora. Tenho colegas que os acolhem na noite de Natal e eles têm gente genuinamente de valor. Assim como têm até hoje líderes corruptos e sanguinários, não muito diferentes de alguns dos piores que já tivemos. Tudo é perdoável, menos a falta de empatia. Mas quando há dinheiro no meio, some a boa vontade. O livro deles diz que não há caminho tão longo quanto o que vai do bolso ao coração”.

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“Eu confesso que não tenho a menor vontade de conhecer Israel. Guita, uma pintora que era muito minha amiga, costumava dizer que o povo aqui no Nordeste é majoritariamente cristão novo, ou seja, convertido ao cristianismo para escapar da fogueira da Inquisição. Pode ser. Mesmo assim, eu teria mais motivação em voltar à Espanha e à Itália para visitar os museus. Acho os árabes meio enrolados, gente que fala muito e faz pouco. Os judeus são mais operosos e Israel deve ser uma evidência disso, não é? Vou contar duas histórias que não sei se interessam à sua pesquisa, mas é o que eu tenho a dizer de mais imediato. Sempre tive curiosidade de ver uma rola circuncidada. Você sabe que não sou veado, mas tinha. Aí conheci um cara simpático, sem nó pelas costas, e pedi que ele me mostrasse a dele. Nem era das maiores, mas o rabino tinha feito um serviço bem feito. A outra coisa é que a boa estrela nem sempre ajuda o artista. Veja Lasar Segall, por exemplo. Casado com uma Klabin muito rica, sua obra não circulou, ficou nas mãos de meia-dúzia de colecionadores e ele não teve uma divulgação à altura do que merecia. Tem gente que o confunde com  Marc Chagall, que morreu quase centenário. Uma vez Bernardo me falou que eles têm obras em Israel, mas que a maioria do acervo está na Europa. Não faço questão de ver o Museu do Holocausto, não. Desgraça por desgraça, já vi na África”.

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“No Japão, temos a cultura do ichiban. Isso nada mais é do que a forma como denominamos o número 1, o que mais se destaca, o primeiro. Para nosso povo, na nossa percepção, Israel é o ichiban da região. Você sabia que tem japonês que fala iídiche? No Japão, temos um longo histórico de superação. Como Israel, somos pequenos, não temos recursos naturais. Eles têm os árabes à volta; nós temos os terremotos que veem das entranhas da Terra e podem nos reduzir a pó. Francamente, eu os admiro. Dizem meus amigos que é porque eu também venho de um país hegemônico, que teve um passado totalitário. Trabalhando em organismos multilaterais há tanto tempo, pude visitar muitos países. E aqui vem um ponto crítico, não me leve a mal. Pois bem, no plano interpessoal, não pode haver gente mais rude. A cultura deles é agressiva, áspera e grosseira. Para nosso povo, seria impossível manter relações de trabalho e mesmo sociais. Os israelenses fazem contato visual prolongado, se comprazem em formular perguntas diretas, abusam da ironia e do humor autodepreciativo. Temos dificuldade em traduzir essas atitudes para nossos patrícios. O mais impressionante para um japonês não é que eles tenham feito tanto em 70 anos. É que isso tenha acontecido num meio tão heterogêneo. No Japão, somos um só povo. Aqui é uma colagem de dezenas. É impressionante. Ser judeu é mais um estado de espírito do que uma comunhão de credo religioso”.

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“Eu vivo na maior cidade judia do mundo. Encontro judeus no metrô e os observo enquanto estou sentado nos cafés de Williamsburg. Sou descendente de mãe síria, avós paternos libaneses e eles fizeram questão de que eu aprendesse o árabe desde cedo, pelo que muito agradeço. No Rio, frequentava a Hebraica com amigos de escola e íamos lanchar lá, depois dos jogos do Fluminense. Ainda hoje sou grande admirador do Arnaldo Bloch, remanescente desse tempo. Já rodei muito o mundo e fui a todos os países do Oriente Médio, salvo a Israel. É claro que tenho admiração pelo que eles fizeram lá. Imagine o que é ter 20% do PIB brasileiro, com apenas 4 % de nossa população. Agora pense no que não seria o país se não tivesse que gastar tanto com defesa. De qualquer forma, foi a indústria militar que propulsionou essa febre de novas empresas startups de que eles se orgulham. Acho que somos todos brimos. Dado meu nível sócio-cultural, estou alinhado com a elite, o que me aproxima dos judeus intelectualizados. Vamos colocar as coisas assim: tudo o que eu gostaria seria de ver a Síria pacificada, e o julgamento de Assad em corte internacional por genocídio. Depois disso, que se celebrassem acordos comerciais que propiciassem a criação de um mercado comum. Meu sonho? Viajar de carro de Palmira a Jerusalém sem mostrar o passaporte. Quanto aos erros de Israel, deixo para depois. Que erro pode ser relevante numa festa de 70 anos?”

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“O pessoal por aqui até hoje me pergunta se sou etíope, falacha ou Beta Israel, como os negros gostam de se definir.  Então sorrio e digo que não. A coisa fica mais complicada de entender quando eles veem que moro bem, numa travessa da rua Dizengoff, e que vou passear com o cachorro na Marina todo dia. Nessas horas conto, agora em bom hebraico, que sou capixaba e que minha mulher me achou em Chipre, onde eu cantava no Rote, de Limassol. Foi um lance de atração muito forte e terminei cancelando uma temporada em Amsterdã para acompanhá-la. No começo, eu disse que Israel não era minha praia. Se gostasse de violência, teria ficado no Brasil.  Aí ela disse que eu era um schmuck e que estava acreditando em clichês. Chamar alguém de idiota aqui não é insulto, não. Então resolvi vir dar uma olhada e gostei do que vi, cara. Entre idas e vindas, já são 3 anos e não trocaria isso aqui nem por Barcelona, cidade que adoro. É certo que vivo uma vida de caranguejo, só ao lado da praia. Liora tem família em Haifa e me apresento lá com o irmão dela que canta num português direitinho. É claro que já fui a Jerusalém, mas nunca me aventurei muito nas cidades árabes. Já me ofereceram vaga de jardineiro e passeador de cachorro. Mas depois se desculpam e gritam um sonoro shalom, Alberto. No fundo, é tudo gente boa, bastante respeitosa. Gosto mesmo daqui, acho que vou ficando”.

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“É claro que diante da deterioração da situação síria, passamos a considerar que somos privilegiados de viver politicamente em Israel. É claro que isso é território anexado e ainda sonhamos com o dia em que viveremos dentro da fonteira síria. Sem pressa, porém. Mas para a maioria dos drusos que moram em Majdal Shams, acho que pouco a pouco se dá uma acomodação à identidade israelense. Nunca seremos um deles, mas muitos dos nossos prestam serviço militar e são amigos de judeus. Temos bom clima, um inverno de verdade e o comércio vai muito bem. É claro que não me sinto em meu país plenamente. Os ocupantes mesmos costumam dizer que seu pais é aquele onde você levanta a cabeça. Não é que andemos de cabeça baixa, mas o sentimento de pertencimento é ambíguo. Você viu o filme “A Noiva Síria”? Se não viu, veja. Para nós, pareceu um documentário porque é tão real. O tempo aplainou muitas das diferenças que tínhamos. Todo mundo tem celular e embora não gostemos de admitir, vemos os programas da televisão deles e ouvimos sua rádio. Lidamos com o tempo de forma diferente e somos mais hospitaleiros. O choque de geração começa a ser mais impactante do que o choque de culturas. Não se trata de judeus contra não-judeus, mas sim do abismo entre jovens e velhos. Na Síria, as coisas estão muito feias e de vez em quando alguém consegue transpor a cerca da fronteira aqui perto”.

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Nakba é como definimos a data. Traduzir esta palavra árabe por catástrofe é ainda dizer muito pouco dela. Há 70 anos, quase 1 milhão dos nossos deixaram suas casas para nunca mais voltar. Nosso algoz foi o Sionismo, a versão mediterrânea do Nazismo. Os ocupantes fizeram conosco o que os alemães fizeram com eles. Eles também eram numerosos nos anos 1940 e não esboçaram reação a caminho dos campos de extermínio. Um sobrevivente escreveu que é porque já os tinham matado por dentro. Logo a execução física para muitos deles, chegava a ser um alívio. Pois bem, não podemos deixar que o mesmo sentimento nos tome. Temos que resistir. Nossos rapazes têm que jogar pedras e nossos intelectuais precisam denunciar o arbítrio. Até os judeus Neturei Karta, que vivem no bairro religioso de Mea Shearim, nos apoiam plenamente. Dia desses, um soldado perguntou a meu cunhado o preço de um par de óculos no mercado. Quando ouviu, achou caro e jogou a mercadoria no balcão, como se fosse lixo. Meu cunhado agrediu-o e foi espezinhado pelos companheiros fardados. Agora está proibido pela polícia de trabalhar. Não é odioso? Pergunte a intelectuais judeus se eles aprovam esse estado de fato. Nunca. Meu irmão é amigo de David Grossman, e Amos Oz já nos visitou na aldeia. Hoje é dia de luto e algo precisamos fazer para marcar nossa dor. Não podemos deixar que eles nos matem por dentro, como fizeram com seus avós na Polônia”.

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“Cheguei a Israel um dia depois do resgate dos reféns de Entebbe. O país estava em festa e o aeroporto depredado em função das comemorações. Olhando em perspectiva, foi uma espécie de renascimento para muitos judeus que estavam desesperançados com os rumos de Israel, então uma jovem nação de 28 anos. De Lod, atravessamos a noite escura rumo à Galileia, e apesar de ser verão, a noite estava fresquinha e estrelada. A cada meia hora, tínhamos que parar para revistas e verificação de documentos. Chegamos ao kibutz de madrugada e éramos esperados por outros voluntários. Minha mãe não entendia o que eu tinha ido fazer lá. Afinal, na Alemanha estava em segurança. Depois de 3 meses, quando voltei ao Brasil, havia um mapa de Israel na parede e vários alfinetes coloridos espetados. Quando perguntei a que correspondiam, ela explicou: os azuis são para os lugares onde você esteve. Os vermelhos correspondem aos incidentes que leio no jornal, tais como atentados, mísseis Katyusha e ônibus explodidos. Achei aquilo uma linda prova de amor. Nunca soube responder se aquela temporada foi mágica porque eu tinha 18 anos ou porque a atmosfera de camaradagem ali reinante era tudo com que sonhava. Hoje acho que foi a junção de ambos os elementos. Gosto de voltar a Israel e já pensei até em morar lá. Mas não passou do estágio de devaneio. As experiências de juventude podem mesmo marcar uma vida”.

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“Você sabe a razão pela qual não empenhamos grande orçamento em divulgar os feitos de Israel no mundo? Porque não adianta. Quem gosta de nossa gente e do que fizemos nessa nesga de terra, já gosta. Ao passo que os que nos odeiam, bem, estes continuarão a nos odiar, mesmo que descobríssemos a cura de todas as enfermidades. É portanto dinheiro perdido. Se eu tivesse um minuto para falar ao mundo sobre esse país que ajudei a fundar, acho que ficaria tão silencioso quanto fiquei nas florestas da Ucrânia, perto do final da Guerra. Por que? De novo, porque não adianta. Um efeito retardado do Holocausto foi o de atribuir a Israel um papel de estado-modelo, o estuário de todas as virtudes. Só porque sofremos o que poucos povos sofreram, tínhamos que mostrar ao mundo qualidades além das convencionais. E no entanto, temos defeitos. E estamos longe da perfeição. Ter o direito de cometer equívocos e injustiças, seria o maior benefício que poderiam nos dar. Somos tão maravilhosos e tão deploráveis quanto é a média de congoleses, lituanos, argentinos, gregos, islandeses, egípcios, nicaraguenses, armênios, bolivianos, tibetanos, mexicanos, senegaleses ou austríacos. Temos homens de bem, professores que honrariam as melhores universidades do mundo. Mas também temos escroques que depenariam sem piedade uma velhinha na fila do banco, se assim pudessem. Anote: estamos empenhados na evolução da civilização tanto quanto qualquer lugar onde vivam homens de boa vontade”.