Fernando Dourado

“O que se comenta aqui no Líbano é que Carlos Ghosn é 100% dos nossos. O avô dele foi para a fronteira Brasil-Bolívia na época do boom da borracha. O pai dele casou por lá também com uma libanesa vinda da África. Como você sabe, há séculos temos sírios e libaneses vivendo na Nigéria. Ainda criança, lá pelo começo dos anos 1960, quando o Líbano vivia uma fase dourada, ele veio morar com a avó e estudou no Notre-Dame de Jamhour, uma instituição maronita de elite. Depois foi para a França e seguiu nessa pisada de boas escolas. Salvo engano, foi para o Liceu Stanislas, perto do Jardim do Luxemburgo. Depois foi para a Politécnica e para a engenharia de Minas. Com um currículo desses, o cara vai ser quase o que quiser na vida, até astronauta. Antes da guerra, já sabíamos que o Líbano seria pequeno demais para ele. Então foi para a Michelin e lá se reportava diretamente à família controladora. Quando a operação estava crítica no Brasil, foi morar no Rio de Janeiro, de onde só saiu para se tornar ainda maior nos Estados Unidos. Nossas famílias eram bem amigas em Beirute até essa época e ficamos felizes quando soubemos que ele vinha para a França para continuar no setor automotivo. Daí em diante, só o acompanhei por jornal. O que posso dizer disso que aconteceu no Japão é que foi uma traição do segundo homem da operação da Nissan. Dizem que nós do Oriente-Médio temos obsessão por ver conspiração em tudo, mas os fatos vão me dar razão. Como é que empresas super auditadas podem fechar os olhos para um item tão básico quanto salário e remuneração? E depois, como é que a Nissan não reporta a seu principal sócio que tem alguma coisa errada? Se a Nissan entregou um peixe graúdo de presente à polícia japonesa, é porque ela tinha intenção de atender aos pedidos da sociedade de que o favor que Ghosn fizera ao salvá-la da falência estava pago, e que era hora de retomar o controle da operação, talvez chutando os franceses para longe. Se ele vai guardar mágoa dos franceses, não sei. Mas eles estão começando a entender que devem muito a Carlos. O que sei é que ele ama nossa terra e que aqui deverá viver sua velhice, onde será bem-vindo. O que as pessoas não sabem, muito menos os japoneses, é que nós os libaneses temos muitas vidas. E ele ainda haverá de viver muitas outras. Talvez daqui para frente bote sua cabeça para funcionar em favor do desenvolvimento de nosso país. Esta talvez seja sua verdadeira missão de vida. É assim que Deus escreve”.

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“Sou japonês de nascimento, mas moro no Brasil desde criança. Portanto, sou brasileiro no Japão e eternamente japonês no Brasil. Trabalhei em auditoria e posso dizer que não há grande empresa japonesa no Brasil que eu não conheça. Já orientei operações importantes que envolviam do seguro de plataformas de petróleo ao leasing de aviões para uma grande empresa aérea daqui. O que posso dizer, especialmente agora quando um câncer me devora a laringe, é que a vida corporativa japonesa nada tem de bonitinha. Se eu contasse os casos de escândalo que conheço só de empresas lotadas na avenida Paulista, amanhã mesmo eu amanheceria morto. Teve rombo de milhões no próprio setor automotivo em uma das mais notórias sogo shosha em operação no país nos anos 1990. Nessa época de boom, todo mundo fazia vista grossa para essas coisas e muita gente achava que o Japão era composto de muitos Akio Morita, presidente da Sony. Morita deu espertamente a entender que o Ocidente era corrompido e que o Oriente era puro. História para boi dormir. O que fizeram com Ghosn foi bem pensado e bastante maquiavélico. Isso vem do segundo, terceiro escalão, de gente como eu, que pode fazer o serviço sórdido em nome da lealdade à empresa e em respeito ao desejo do kaishô. A gente vai propondo pequenas falcatruas com ar inocente e guarda o dossiê para o dia em que quiser implodir o cara ou chantageá-lo. No caso de Ghosn, foi o primeiro. A vida corporativa japonesa é cheia de sujeira. Sem pensar muito, posso te citar alguns nomes que estão na mídia como protagonistas de escândalos mil vezes mais sérios do que os que são imputados a Ghosn. A começar pela Olympus que cometeu fraude fiscal de mais de U$1 bilhão. Depois tivemos o rumoroso caso da Toshiba e da Kobe Steel. Na mesma linha, teve rolo feio na Mitsubishi e na Kawasaki. Quer mais? Pois o que mais dá o que falar até hoje é o da KYB. Não, não é o que você está pensando. A KYB fabrica sistemas de proteção de grandes edifícios contra abalos sísmicos e terremotos. É um bom símbolo das bases sobre as quais se assenta o país, não é? Esse Hiroto Saikawa  pode parecer muito ambicioso hoje, mas no fundo é um infeliz. Deve ter invejado o Ghosn a vida toda e jamais conseguirá replicá-lo. A traição que fez foi tamanha que vai terminar recebendo o desprezo dos pares e tendo que rasgar a barriga com uma espada. Essa história ainda não acabou. Por quem eu torço? Sei lá. Eu só torço por mais uns meses de vida. Para poder ver meu neto nascer”.  

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“Seria sumamente petulante da parte de qualquer caçador de cabeças tentar abordar Carlos Ghosn com uma oferta de emprego. Que emprego pode-se propor a um homem que tem acesso a tudo? Um homem que deixou saudades no Brasil, nos tempos em que trabalhou na Michelin, e que ganharia o que quisesse nos Estados Unidos, onde também está em casa. Veja, não falo dos U$ 20 milhões anuais que ele embolsava na Renault-Nissan. Isso é o que um banco de investimento médio paga de bônus a um diretor júnior. Carlos sabia de tudo isso e já devia ter recebido convites de todas as montadoras americanas. Mas o fetiche dele é o eixo Paris-Tóquio, o que não dá para condenar. O que mais me impressiona é que ele pensa e comunica com clareza por sobre as fronteiras, como nenhum desses holandeses da Unilever com quem trabalhei e que tanto admirei. No Japão, onde o cara hoje está preso, ele já foi protagonista de história em quadrinho. Já foi para áreas sinistradas por radiação nuclear perto de Fukushima e ficou conhecido como o homem “sete a vinte e três”, por trabalhar das 7 da manhã às 11 da noite. Numa enquete, já foi apontado como um dos líderes que os japoneses queriam para lhes governar os rumos. Dá para acreditar nisso? Um gaijin em terras feudais de samurais? Mas os japoneses sempre têm um punhal embaixo do veludo, não é? Ontem Nova York me ligou e os caras estão excitados com a possibilidade de trazê-lo para os Estados Unidos quando essa história toda chegar ao fim. Se foi fraude fiscal, paga-se a multa e a vida continua. Só não sei o que vai acontecer com o Japão. Já se comenta que o presidente da farmacêutica Takeda, um europeu, quer fazer as malas porque o próximo pode ser ele. O Japão xenófobo está mostrando a verdadeira face, essa é a verdade. No fundo, esses caras continuam a ser uns ilhéus cheios de esquisitices e muito ciosos na hora de defender o que lhes parece direito sagrado. Vou continuar gostando do Japão e da comida deles. Mas minha solidariedade para por aqui. A imprensa está se fartando nesses dias, não é? Fala agora que Ghosn é mulherengo, que casou em Versalhes e que está vivendo à base de 3 tigelas de arroz, sem direito nem a ter advogados ao lado dele na audiência. Se ele quiser vir para os Estados Unidos, encontrará todas as portas abertas.  Não que ele seja santo, mas o encanto está justamente nesse ponto, não é? O cara não é candidato a Papa e sim a transformar crise em dinheiro e divergência em cooperação. Faltou só um pouquinho de cuidado”.

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