Fernando da Mota Lima

Recorte de Seated man 1939  – De Kooning - Hirshhorn Museum

Recorte de Seated man 1939 – De Kooning – Hirshhorn Museum

Minha identidade?

Sou pós-moderno, narcisista, consumista e high-tech. Ah, também sou rico, ideólogo intelectual da nova elite.

Religião?

Tenho a minha, que misturo sem preconceito com tudo que me torne mais livre, resolvido e saudável. Acho que a religião se tornou um investimento e é bom que assim seja. Quem hoje pensaria em guerra religiosa no Ocidente? Só se fosse por acidente. Por que eu teria pudor de traduzir Deus nos termos de minha ética utilitária? As novas religiões, os pastores, hábeis investidores no mercado da fé, também as religiões tradicionais, todos estão adotando esse novo perfil religioso. Estou apenas remando com a corrente. Os novos líderes religiosos são treinados como empresários de Deus, agentes competentes do mercado da fé. A cruzada da fé que promovem obedece aos princípios da ambição de lucro, sucesso na vida, bem estar psíquico e sexual e, claro, liquidez no mercado financeiro. É preciso competência para traduzir a infelicidade e o desamparo dos fieis em lucro. É essa competência que invejo em muitos dos novos líderes que triunfam no mercado.

Preconceito?

Corta essa, galera. Nenhum. Defendo a diferença, todo tipo de diferença. Por isso estou com a diferença da mulher, sempre oprimida nessa sociedade machista, com a diferença gay, com a igualdade de todos. Logo, estou também com a igualdade racial e a liberdade religiosa. Se tivesse preconceito, seria contra os fracassados, os desanimados, os altruístas incapazes de converter o egoísmo e a ambição em alavancas do triunfo individual.

Felicidade?

Totalmente. Como o Estado brasileiro é o Estado patrão, o Estado provedor, o Estado mãe das tetas fartas, concordo que a felicidade deve ser objeto de uma política de Estado. Melhor dizendo, é dever do Estado garantir a felicidade de todos. Afinal, não é pra isso que vivemos no país de todos?

Autoestima?

É a base de tudo, cara. Acho que o publicitário que levantou essa bola trouxe uma contribuição fundamental para a felicidade na sociedade das massas, a realização da felicidade nas condições do capitalismo competitivo em que passamos a viver. Não compreendo a modéstia desses publicitários geniais que tramam nos seus gabinetes coisas geniais como o princípio da autoestima, difundem isso no mercado e no entanto se escondem. Sem autoestima não chegamos a lugar nenhum. Como intelectual e escritor, acredito sempre em mim consciente de que a opinião alheia, sobretudo a dos meus pares, é a fonte do meu sucesso, da minha realização profissional. A primeira coisa que faço, quando acordo todos os dias, é me olhar no espelho e dizer para mim próprio: cara, você é a pessoa mais genial do mundo. Você é um vencedor. Depois disso vou para a luta certo de que transformarei todas as minhas ambições em realidade.

Ambições?

São o que mais tenho. Tenho tantas, cara, que preciso tomar umas drogas pra nocautear a insônia. Quero tudo e mais alguma coisa. Como intelectual, apareço literalmente em todas as feiras literárias. Se a literatura importa? Claro que sim, contanto que eu apareça. Não existe coisa mais fácil do que me achar numa feira literária. Basta ir aonde estão as câmeras, os escritores da moda, os astros da mídia e sobretudo os cantores, que são o verdadeiro foco das feiras. Portanto, melhor estar perto de uma guitarra ou violão do que perto de um livro ou de um laptop.

Se navego nas redes sociais? Sempre. Onde quer que vá, onde quer que esteja, estou conectado. As redes sociais são a grande vitrine do mundo. Nelas todos desfilam, se expõem, se exibem, fofocam e se promovem. Nelas todos têm direito de se comportar como se fossem famosos. As redes sociais pulverizaram a frase famosa de Andy Warhol segundo a qual todos teríamos direito a 15 minutos de fama. Agora todos têm direito à fama permanente, todos se sentem mimados pela fama. Por isso as pessoas se conectam nas redes para falar à vontade de todo tipo de banalidade somente concebível numa pessoa famosa. Por isso elas digitam na rede seu mau humor, sua insônia, o que comem no café da manhã, as relações íntimas, o cachorro próprio e o do vizinho, tudo que não tem importância nem na vida das pessoas mais importantes. Além disso, postam suas melhores fotos, até dos pratos que consomem, tudo que acham merecedor de admiração e inveja. O mais importante fenômeno da difusão das redes sociais é o exercício da crítica em escala universal. Agora todos podem dizer o que pensam, criticar tudo, opinar sobre tudo. É claro que muita crítica é inspirada pela inveja, o ressentimento, o ódio a quem aparece mais do que a gente. Mas como inventar o Facebook sem quebrar alguns ovos? O que importa é o omelete que todos fazem e comem. Cá entre nós, queria mesmo era comer algumas gostosas no sentido figurado da expressão. Evidentemente isso fica entre nós.

Ética intelectual?

Óbvio. Um intelectual que se preze não pode prescindir da ética. Quando resenho um livro, por exemplo, escolho uma obra sempre para falar bem. Escolho o autor vivo a quem tenho acesso e portanto pode também me promover. Qual o sentido de louvar os clássicos, todos há muito bem enterrados e portanto inoperantes no mercado? Que lucro posso eu sacar de Shakespeare, Machado de Assis, Conrad, Italo Svevo, Auden…? Deixo essa função para os críticos acadêmicos, que apostam sempre no certo, no já estabelecido. Com meu editor – de editora, blog, revista eletrônica ou periódico – procuro sempre concordar, sobretudo quando discordo. Como aparecer polemizando com os companheiros de profissão, detonando uma obra ou um autor que podem me garantir muitos rendimentos futuros?

Se sofro do tédio da controvérsia, como Machado de Assis? Depende. Se for controvérsia para me promover, fique certo de que entrarei na luta sem transigir. A controvérsia intelectual ou a polêmica literária importam na medida em que rendem dividendos publicitários. O público não está interessado no debate de ideias, mas sim nas pessoas que debatem as ideias. Além disso, não existe nada mais relativo do que gosto literário. Assim, não há como determinar se Machado de Assis é melhor do que Paulo Coelho ou se Beethoven é melhor do que Reginaldo Rossi. É tudo questão de gosto ou opinião pessoal. O que afinal importa é o rendimento promocional da polêmica. Já imaginou o que não me renderia uma polêmica com Chico Buarque ou Caetano Veloso, com Paulo Coelho ou Jô Soares?

Política?

É claro que tenho convicções políticas. Só que não são mais aquelas da militância tradicional e antiquada. Não aguento mais esse papo weberiano de ética da responsabilidade, muito menos ética de convicção. Quero dizer, devemos adotar a ética da responsabilidade na medida em que ela garanta resultados traduzíveis em  fonte de renda. O negócio é calcular resultado, a ética do cálculo e benefício. A ética careta malha Lula e o PT somente porque souberam astutamente se apropriar das práticas dos grupos políticos tradicionais. A ética careta ataca Lula simplesmente porque seu filho Lulinha, símbolo de uma nova elite, enriqueceu em poucos anos, dizem que adotando meios ilícitos. Ora, para mim isso é antes de tudo prova de competência. Ataca ainda o PT e seus aliados simplesmente porque blindaram Lula quando pipocaram escândalos que, vemos agora, deram em nada. Nem mesmo o desfecho do processo envolvendo o mensalão desmente meu argumento. A população, o povo brasileiro que precisa de trabalho e renda, que quer legitimamente acesso ao mercado, o povo não dá a mínima para isso. Basta observar a aprovação de Lula sem precedente em toda a nossa história política. O mesmo fenômeno se repete com Dilma Roussef, cuja aprovação foi blindada pelo próprio povo contra as sentenças sancionadas pelo Supremo Tribunal Federal. Concluindo, os resultados estão aí à vista de quem queira ver. A ética careta e ideologicamente anacrônica não vê porque é presa do preconceito contra um presidente que veio lá de baixo e não passou pela universidade. E daí? A universidade está cheia de gente que não sabe nada do que Lula sabe. Acima de tudo, não é capaz de ganhar nada do que Lula ganhou. O que importa é o resultado, o dindim no bolso. A justiça no reino da política é o que os vencedores declaram justo. A ética é manufaturada nas urnas e no poder que delas emana. O resto os publicitários ficcionalizam e editam.

Uma política para os pobres?

Por que vou me preocupar com isso? Aliás, ela já existe desde que Lula transformou o Brasil no país de todos. Dilma Roussef vai levando adiante a tocha, que continua acesa garantindo a inclusão de milhões de brasileiros no mercado. No mais, deixe que os pobres cuidem de sua pobreza, que não é em nenhum sentido parte da minha responsabilidade. Se fosse, criaria uma ONG para faturar ainda mais, como faz muita gente de sucesso que conheço. Catador de lixo é investimento, cara. Um conselho que te dou de graça: invista numa ONG chamada Salvador do Lixeiro. Esse papo piedoso sobre a pobreza, a desigualdade existente no Brasil, não passa de populismo da velha esquerda. Aliás, como bem disse Joãozinho Trinta, quem gosta de pobre é intelectual. Ou não foi isso que ele disse? Ou não foi ele quem disse? Tenho coisa mais importante para fazer e pensar.

Se me preocupo com minha aposentadoria? Que loucura é essa, cara. Estou apenas começando a viver. Além disso, dissolveram-se as fronteiras etárias. A grande aposta agora é conquistar a imortalidade. Creio no milagre da ciência. Por isso, sei que mais cedo ou mais tarde ela descobrirá o elixir da eternidade transformando assim a tradição mítica em realidade produzida pela ciência. É claro que a imortalidade será uma mercadoria muito cara, acessível apenas a uma fração mínima da elite. Depois, obedecendo aos mecanismos infalíveis do mercado, a pressão da demanda abrirá um vão na porta estreita da oferta. É através dele que poderei assegurar minha imortalidade. O importante é sonhar alto, sonhar o impossível que a ciência e a vontade humana mais cedo ou mais tarde transformam em realidade. Enquanto a imortalidade não chega, vou me virando com cirurgia plástica. Já fiz cinco. Graças a elas, removi gordura localizada e corrigi algumas imperfeições da natureza que me tornaram mais jovem e bonito.

Se sou um rebelde sem causa?

Claro que não, cara. Tenho causa, sim. Se escolho, e estou sempre exercendo minha liberdade de escolha, isso é já uma evidência de que minha rebeldia tem causa. Escolho minha grife. Escolho meu carro. Escolho entre a Skol e a Antarctica. Escolho minha gata não só por amor, mas também por saber que ela corresponde a meus ideais de mercado e afirmação da minha identidade. É no mercado que a gente encontra a alma gêmea e assim promove a síntese entre a tradição romântica e a bolsa de valores. Escolho entre Messi e Neymar. Escolho meu ídolo do Big Brother Brasil baseado na política promotora da diferença, que é a minha praia. Escolho a telenovela que promove a diferença. Não vou sair por aí beijando homem, cara, mas defendo a telenovela que mostra homem beijando homem. Não gosto dos negros que moram no meu condomínio nem acho que empregada doméstica deva usar elevador social, mas defendo o direito de ocuparem seu lugar na sociedade. Aliás, empregada doméstica agora é secretária. Já que a gente não aumenta o salário dela, nem lhe concede condições de tratamento igualitário, mudar a linguagem concorre para valorizá-la. Como já observei, o país é de todos. Taí uma frase que eu gostaria de ter criado. Você não imagina o quanto invejo o publicitário que bolou essa frase.

O ser que mais amo?

São dois, não um: Bill Gates e Lulinha, meus cãezinhos adorados. Não sei de dito mais verdadeiro que este: o cão é o melhor amigo do homem. Entre nós, eu e eles, não existe concorrência, conflito de opinião, choque entre vontades, a guerra que a todo instante decretamos entre nós, humanos, em nome do princípio da liberdade de cada um. Se as pessoas fossem como Bill Gates e Lulinha, o mundo seria o paraíso.

Se escolho ser eu?

Casseta e planeta! Claro que escolho ser eu e sei quem sou. Sou o que o espelho reflete. Já imaginou a vida de um intelectual como Nietzsche, por exemplo? Lembra como acabou, onde acabou? Quero é cuidar de mim, cara. Ser eu é ser saudável. Só me falta agora uma coisa: o dinheiro da entrevista que previamente acertamos. Vamos nessa.