Helga Hoffmann

A China é uma economia de mercado? Essa questão voltou à tona quando se preparava a cúpula ministerial da Organização Mundial de Comércio (OMC) que se realizou mês passado em Buenos Aires.[1] Pois desde meados da década de oitenta do século passado a China pede na OMC o reconhecimento como economia de mercado. Assim, a pergunta nunca teve caráter meramente acadêmico, é carregada até hoje de ruído político e ideológico. Mais ainda porque essa pergunta sobre o caráter de mercado da economia chinesa está ligada à discussão sobre as causas do espetacular sucesso dessa economia e de seu comércio exterior.

No âmbito da OMC, reconhecer ou não a China como economia de mercado passa a ser uma questão relacionada aos “interesses nacionais”. Quando não é reconhecida como economia de mercado na OMC tampouco é aceita a formação de preços dessa economia para julgar casos de dumping, adotando-se a pressuposição de que os preços dessa economia são falseados por intervenções administrativas no mecanismo de formação de preços. Mesmo assim, quando o foco é tentar provar na OMC casos de dumping por parte de empresas chinesas, a China ser ou não ser de fato economia de mercado entra na argumentação apenas de forma marginal.

Um exemplo foi a discussão sobre o reconhecimento da China como economia de mercado, por ocasião da visita do presidente chinês Hu Jintao ao Brasil em novembro de 2004. Nenhum lado se preocupou em examinar empiricamente se a China já não era, então, economia de mercado, depois de duas décadas de mudanças na direção da abertura comercial e autonomia de suas empresas. O reconhecimento do governo brasileiro foi criticado por dificultar acusações de dumping contra a China na OMC. Aliás, nenhum dos países que na mesma época reconheceram a China como economia de mercado, como Singapura e Austrália, apresentaram à OMC estudos comprobatórios desse status. Os Estados Unidos e os países da União Europeia sequer discutem esse status, e têm insistido nas condições de acesso de suas próprias empresas, nas exigências de transferência de tecnologia e nas críticas à OMC que supostamente não faz valer as regras, negociadas por 15 anos, do acordo que permitiu a entrada da China como membro da OMC em 10 de novembro de 2001.

O que é economia de mercado? A análise econômica estuda o funcionamento da economia em geral, não necessariamente economias de mercado, mas a verdade é que a teoria econômica é fundada no funcionamento de uma economia de mercado. Outra teoria econômica, baseada em suposta “socialização dos meios de produção”, acabou ficando sem base empírica de funcionamento no século XXI. Qualquer livro de texto explicará que economia de mercado é aquela em que as decisões de produção e consumo são tomadas de modo descentralizado por empresas e indivíduos. Não é economia de mercado aquela que tem uma autoridade central tomando as decisões de produção e consumo. Na base de uma caracterização tão geral a China hoje é economia de mercado.

A pesquisa econômica mais séria sobre a transformação da China nos últimos 50 anos tem uma visão menos abstrata do que seja mercado. Ronald Coase, Prêmio Nobel de Economia e pai da chamada “nova economia institucional”, passou os últimos anos de sua vida pesquisando a economia chinesa, em conjunto com o chinês Ning Wang, formado pela Universidade de Beijing e atualmente professor da Arizona State University. A estreita cooperação com Ning Wang permitiu a informação sobre eventos, entrevistas e fontes na China e sua interpretação, essencial na perspectiva da economia institucional. A nova economia institucional, de Ronald Coase e também de Ning Wang, simplesmente reconhece que não existe país cuja economia não tenha alguma dose, maior ou menor, de intervenção governamental e, assim, incorpora à análise econômica as normas sociais e legais, as instituições em geral, subjacentes à atividade econômica e à evolução da economia.

O estudo de Coase e Wang, “Como a China tornou-se capitalista”, foi publicado em 2012.[2] O título se valida no texto de grande detalhe, não é pura provocação. Analisa a economia chinesa desde a fundação da República Popular da China liderada por Mao Tsetung em 1 de outubro de 1949, e em especial depois da morte de Mao, em setembro de 1976, e o fim da Revolução Cultural. Mostra a transformação da China em economia de mercado, gradualmente, por muitas trilhas e experimentos, sem que renunciasse formalmente ao socialismo. Mostra como reformas começaram já antes de dezembro de 1978 e Deng Xiaoping, comumente citados como o início do processo de transformação. Interessante como se revelam as mudanças de percepção entre os membros do Partido Comunista Chinês e a população em geral, em diferentes circunstâncias.

Finda a Revolução Cultural, quando se conhecem os danos, a fome e a pobreza que ela deixou no seu rastro, reabilitados diversos intelectuais e membros do PCC que haviam sido presos durante a década em que durou aquele programa de Mao, teve impacto o debate sobre um artigo publicado pela escola do PCC, “Prática é o único critério para testar a verdade”. Parece que essa elaboração sobre uma frase de Mao esquecida (“Busque a verdade nos fatos”) e tida como o lema de Deng foi mais importante do que se imagina no avanço das reformas, ao diluir a força de argumentos ideológicos e facilitar a transição da ênfase da “luta de classes” para a da “modernização socialista”.

“Como a China tornou-se capitalista” é um extenso estudo histórico. O mais surpreendente, dada a ilusão que prevalece sobre os poderes de um governo central para controlar uma economia planificada, é a constatação de que a série de eventos que levaram a China a tornar-se economia de mercado e capitalista não foi programada, não veio de uma decisão do Comitê Central do Partido Comunista ou do governo central chinês. Os resultados foram inesperados e, mais, a rapidez da transformação surpreendeu a todos. O impulso veio do que Coase chama de “revoluções marginais”, em que forças econômicas surgiram fora do controle estatal, sendo toleradas e eventualmente apoiadas, criando um setor não estatal que se torna mais dinâmico e passa, a partir de certas circunstâncias, a pressionar e impulsionar o setor estatal. Uma dessas histórias é como surgiu o mercado de ações e a Bolsa de Shanghai. A rapidez é explicada pela coexistência e interação dessas reformas que surgem do setor não estatal com reformas empreendidas pelo setor estatal.

Para Ronald Coase e Ning Wang o mercado não é apenas um mecanismo eficiente de alocação de recursos: “… é também essencialmente um mecanismo de aprendizado coletivo. Oferece a todos os atores econômicos um aprendizado baseado em ensaio e erro, permitindo a eles explorar oportunidades existentes e criar novas oportunidades.” (p.168) Tentando explicar a velocidade da transformação da China, apresentam um painel imenso e diversificado: “Quando cada um dos governos locais chineses, incluindo os governantes de 32 províncias, 282 governos metropolitanos, 2.862 governos municipais, governos de 19.522 cidades e 14.677 aldeias, testa suas maneiras de desenvolver a economia local, numerosos experimentos diferentes são conduzidos simultaneamente, cada um competindo com os outros.” (p.173)

Não haveria uma maneira mais simples para concluir se um país tem ou não uma economia de mercado? Algum indicador, alguma definição operacional? Uma economia em que os gastos do governo são equivalentes a mais de metade do produto interno bruto (como França ou Suécia) é economia de mercado? É claro que gastos governamentais dessa ordem implicam um deslocamento dos gastos privados descentralizados de investimento e consumo. Ou aquela em que o governo intervém para impedir que uma grande empresa nacional seja comprada por outra grande empresa, porque estrangeira? Ou quando o governo interfere na contratação e demissão de empregados?

Acadêmicos chineses tentaram dar uma resposta à pergunta sobre economia de mercado, através de uma pesquisa realizada na Universidade Normal de Beijing, envolvendo 28 economistas e estatísticos sob a coordenação de Xiaoxi Li.[3] Os indicadores de “penetração do mercado” (“marketization”) escolhidos e quantificados para vários anos passam de trinta: – % do gasto público e do investimento público no PIB

– % de transferências governamentais e subsídios no PIB

– % de funcionários públicos no emprego urbano total

– % do investimento em ativos fixos do setor não estatal naquele do total da sociedade

– emprego no setor não estatal urbano como % do emprego urbano total

– valor agregado no setor não estatal como % do PIB

– receita tributária proveniente do setor não estatal como % da receita tributária total

– volume de exportação e importação do setor não estatal como % de exportação e importação total

– subsídios tributários para cobrir prejuízos de empresas estatais como % do PIB

– % das grandes empresas estatais que escolhem seus próprios administradores

– % das grandes empresas estatais que gozam de autonomia operacional

– % do fluxo intersetorial de trabalhadores no total de trabalhadores

– % das grandes empresas com regime de trabalho contratual

– % de fundos estrangeiros, de fundos próprios e de outros fundos no total do investimento fixo

– % dos bens de consumo cujo preço no varejo é determinado pelo mercado no volume total do varejo

– % dos produtos agrícolas e relacionados cujo preço é determinado pelo mercado no total das vendas

– nível médio das tarifas aduaneiras

– impostos sobre comércio exterior como % do valor total de exportações e importações

– % de casos de concorrência desleal investigados e barrados

– % de casos de violação de direitos de propriedade intelectual investigados e barrados

– ativos dos bancos não estatais como % dos ativos bancários totais

– taxa média de inflação dos últimos 5 anos

– faixa das taxa de juros para empréstimos de 1 ano concedidos por várias instituições

– % dos itens sem restrições no total dos itens de capital

– desvios entre taxas de câmbio externas do renminbi e taxas de câmbio locais do renminbi.

Além desses indicadores quantificados (e mais alguns), foram discutidos vários fatores institucionais que não podem ser resumidos através de uma cifra, como regime cambial, sistema financeiro, quadro de referência da barganha salarial, regras para o investimento estrangeiro, grau de controle do governo sobre os meios de produção e as decisões das empresas, direito à propriedade e lei de falências, regime tributário, leis de governança e contabilidade corporativa.

Como não podia deixar de ser, a conclusão da pesquisa, publicada em 2006, é que a China é, sim, uma economia de mercado. Ainda que a abordagem tenha sido completamente diferente daquela de Ronald Coase e Ning Wan, o resultado final foi o mesmo: os indicadores mostraram como houve em cada ano, de 2000 em diante, um avanço no “grau de penetração do mercado”. Mais que o retrato de um dado ano, eram indicadores de tendência. E a tendência se confirmou.

[1] XI Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, Buenos Aires, 10-13 de dezembro de 2017.

[2] Ronald Coase & Ning Wang, How China became capitalist.  Palgrave MacMillan, 2012.  Coase tinha então 101 anos. Morreu no ano seguinte.

[3] Xiaxi Li (Beijing Normal University), ed. Assessing the extent of China’s marketization, The Chineses Trade and Industry Series, Ashgate Publishing Ltd., England, 2006.