Helga Hoffmann

A Turquia foi para as manchetes no fim da semana passada, a começar por “Moeda turca desaba”. De fato, a lira perdeu quase 18% do seu valor em apenas um dia, 10 de agosto. No mesmo dia houve um movimento semelhante de queda em relação ao dólar em vários países emergentes cuja moeda já vinha se desvalorizando desde os primeiros sinais de que o Fed, o banco central americano, abandonava a política de aumento da liquidez (o famoso “quantitative easing”) e de que os juros americanos começariam a subir. De fato, pode-se verificar, já desde janeiro deste ano, acentuado aumento da taxa de câmbio em relação ao dólar (ou seja, desvalorização da moeda local) não só na Turquia, mas também na África do Sul, Índia, Indonésia, Argentina, Brasil. No conjunto, o dólar americano se valorizou no mercado mundial, como mostra o índice de JP Morgan (JPM EM FX) que mede a volatilidade do câmbio no G7 e mais 10 moedas emergentes. Mas diferentes moedas tiveram diferentes taxas de desvalorização, segundo as fragilidades de cada país.

Ainda que o contágio esta semana tenha partido de Ancara e Istambul, ele foi ampliado por uma dose de pânico momentâneo, sobretudo nos países em que o afluxo de capitais se reduz sempre que aumenta a percepção de risco e os investimentos e aplicações financeiras se dirigem aos mercados considerados mais seguros. Fato é que vários aspectos dessa crise cambial na Turquia vêm cozinhando há tempos. E esta crise nem pode ser explicada só pelos aspectos econômicos – se é que em algum lugar e em algum tempo foi possível separar economia e política quando está envolvida intervenção governamental. As fragilidades manifestadas na Turquia pouco têm a ver com a sinalização de aumento de juros do Fed.

O fator imediato parece ter sido a escalada de retaliações entre Turquia e Estados Unidos no momento em que fracassaram negociações sobre a libertação do pastor evangélico Andrew Brunson, preso na Turquia desde outubro de 2016, que se daria em troca do arquivamento do processo que corre nos Estados Unidos contra executivos de um grande banco estatal turco, Halkbank. Estes teriam desrespeitado as sanções contra o Irã, e um dos membros da diretoria do banco, Hakan Atilla, foi preso nos EUA e depois condenado a 2 anos e 8 meses por uma corte em Manhattan. O procurador havia pedido 20 anos e Erdogan chegou a dizer na ocasião que declarar Atilla criminoso era “quase equivalente” a declarar criminosa a República da Turquia.  Já o pastor Brunson vivia há duas décadas em Izmir, onde criou seus três filhos, e pregava para o seu minúsculo rebanho de cristãos, o que por si só causava suspeição dos mais intolerantes, mas foi preso em outubro de 2016 e condenado a 35 anos de prisão por causa de denúncia de que teria apoiado o fracassado golpe de 15 de julho.

A orquestração do golpe de julho de 2016 (e de outros protestos) tem sido atribuída por Erdogan a “gulenistas” que vê infiltrados por toda parte, supostamente liderados pelo clérigo Fethullah Gulen, que vive na Pensilvânia, e cuja extradição Erdogan vem pedindo há anos, com mais insistência desde 2016. Erdogan teria inclusive proposto a troca de Brunson por Gulen. Sob a acusação de “gulenismo” foram presos, além de Brunson, nacionais de outros países, centenas de jornalistas e acadêmicos, e milhares dentre funcionários públicos e magistrados que foram então demitidos e que não têm o mesmo apoio dos cristãos evangélicos dos Estados Unidos liderados pelo vice-presidente Michael Pence.[1]Em prisão turca está inclusive um físico que trabalhava para a NASA, o turco-americano Serkan Golge, preso quando passava férias na Turquia e condenado a 7 anos e meio de prisão por suspeita de terrorismo pelo fato de ter conta em um banco que seria ligado a Gulen. Talvez por ser muçulmano, não está incluído na campanha dos evangélicos pela libertação de Brunson. Igualmente ignorados nas negociações estão funcionários turcos dos Consulados americanos também presos a pretexto de “gulenismo”. Sem falar de jornalistas europeus.

Em suma, os atritos entre os Estados Unidos e a Turquia são antigos, não tratam só de presos políticos, e mesmo a participação comum na OTAN não conseguiu atenuar. Enquanto Erdogan considera os curdos na Síria como aliados dos curdos na oposição turca e quer aniquilá-los, os Estados Unidos apoiaram os rebeldes curdos na Síria, que eram a força mais organizada contra o ditador Bashar al-Assad. Os Estados Unidos, por outro lado, não aceitam que a Turquia, membro da OTAN, pretenda comprar da Rússia um sistema de defesa anti mísseis.

Consequência direta ou não do colapso das negociações envolvendo o pastor Brunson, Trump anunciou em 10 de agosto a duplicação das tarifas sobre exportações turcas de aço e alumínio. A lira, que já havia perdido mais de 25% do seu valor desde janeiro, afundou mais 12,5% na semana, quase 18% em um só dia. Na verdade, a decisão protecionista de Trump antecipou uma desvalorização da lira que já era esperada para uma economia com elevado déficit em transações correntes e no orçamento público, uma inflação em aceleração e chegando a 16% com um Banco Central manietado, dívida pública elevada, alto endividamento do setor privado (empresas e bancos) em divisas estrangeiras, e reservas insuficientes para cobrir as necessidades de amortização da dívida em dólares do setor privado.

Fato é que o aumento das tarifas a seus produtos dá-se em momento em que a economia turca sofre os efeitos das políticas populistas adotadas por Erdogan em sua caminhada para modificar a Constituição, passando de uma democracia parlamentar para um presidencialismo com excepcional concentração de poderes em sua Presidência. Já foi possível constatar a ansiedade dos investidores em alerta quando Erdogan tomou posse para o seu segundo mandato de 5 anos, em 9 de julho de 2018, sob a nova Constituição que ele conseguiu aprovar, com margem estreita. Sintoma talvez da preocupação com a escalada autoritária e a prisão de tantos jornalistas estrangeiros, os únicos chefes de estado presentes à posse foram o primeiro ministro russo Medvedev da Rússia, sentado junto aos presidentes da Somália, Sudão, Chade e Paquistão. Dos árabes, o único presente foi o Emir de Qatar, das Américas o único presente foi Maduro.

Mais sintomático ainda: imediatamente nomeou como Ministro das Finanças o seu genro, Berat Albayrak. E a lira deu mais uma escorregada para baixo e a inflação para cima, em meados do ano. O governo turco continua em estado de negação dos problemas que enfrenta a economia turca, que são em boa medida a consequência de suas próprias opções de política. O Banco Central ficou dois meses sem aumentar juros, mesmo com a inflação acelerando, pois Erdogan já disse que juros são um “instrumento de exploração” e forçou os bancos a manterem baixos seus juros de empréstimos. Os gastos públicos aumentaram, e as empresas, sobretudo construtoras, foram encorajadas a acumular dívidas em moeda estrangeira de forma, como se vê agora, insustentável. O excesso de gastos, inclusive obras de construção em infraestrutura como seu palácio suntuoso, foram paralelos à campanha pela ampliação de seus poderes.

Tendo determinado juros baixos sem considerar os fundamentos econômicos, o governo ainda não disse como vai resolver uma crise de dívida corporativa de um setor privado com mais de 200 bilhões de dólares de dívida externa. Se as reservas do país fossem elevadas, o Banco Central poderia agora ameaçar jogar dólares no mercado para conter a corrida. À falta desses, Erdogan apelou para que todos os cidadãos trocassem por liras quaisquer divisas estrangeiras que tivessem, para que o apoiassem em sua “batalha” ao enfrentar o “complô estrangeiro” fomentado por Washington. E ameaçou que, diante da “traição” dos Estados Unidos ao seu aliado na OTAN, se voltaria para novos aliados.

Quando o mercado cambial acalmou um pouco depois da promessa do Banco Central da Turquia de que faria o necessário para que não faltassem dólares para as empresas pagarem suas dívidas, Erdogan voltou à “batalha” pedindo um boicote nacional a bens americanos, apelou para que ao invés de Apple comprassem Samsung ou o celular da marca nacional Vestel Venus, esquecendo que possivelmente qualquer celular contém componentes americanos. Trump não se fez esperar, aumentou as tarifas sobre mais algumas importações americanas e impôs sanções a dois funcionários turcos.

Alguma calma voltou ao mercado e a lira se recuperou ligeiramente quando se anunciou em Ancara, no meio da semana, que o Qatar havia oferecido apoio da ordem de 15 bilhões de dólares em investimento direto na Turquia. Além disso, a agência turca de supervisão bancária anunciou medidas para dificultar a especulação que aposta na continuação da desvalorização da lira. A agência baixou de 50% a 25% do capital de cada banco o valor que pode ser mantido em “swaps” cambiais.A lira chegou a TL6,04, baixando do pico de TL7,21 a que chegara no começo da semana. Mas o confronto com os Estado Unidos continuou, o governo turco dobrou tarifas para uma série de produtos americanos, como álcool, tabaco e carros.

Os Estados Unidos não fazem por menos: a secretária de imprensa da Casa Branca lamentou que a Turquia estivesse a “retaliar contra a decisão dos EUA de protegerem seus interesses de segurança nacional”, trazendo à lembrança que uma pesquisa americana concluiu que importações de aço prejudicavam a segurança nacional dos Estados Unidos. E a demonstrar que não é só Erdogan que está em “batalha”.

Recorrer a um empréstimo do FMI, para conter a desvalorização da lira enquanto é implantado um programa de recuperação para melhorar os fundamentos da economia turca, é opção humilhante e inaceitável para Erdogan. E mesmo que considerasse tentar esse cavalo-de-pau, já há no Congresso americano projeto no sentido de impedir empréstimos dos organismos internacionais à Turquia.

Como disse o Le Monde em Editorial de 16 de agosto de 2018, considerando que os dois atores principais são “o populista explosivo Donald Trump e o autocrata melindroso Recep Tayyip Erdogan – que colocam tanta testosterona na sua prática diplomática” – está difícil prever o desenlace do duelo. E difícil prever o que vai acontecer com a economia turca e as repercussões mundo afora do novo presidencialismo autocrático.

[1]Examinamos na “Será?” de 21 de julho de 2017a escalada autocrática de Erdogan e a prisão de milhares de opositores a pretexto de “gulenismo”.