Paulo Gustavo

Anthony Hopkins e Emma Thompson em Vestígios do Dia – James Ivory 1994.

Quer apreciemos ou não o mercurial processo de concessão do Prêmio Nobel (como de resto o de tantos outros prêmios), a láurea é um ícone de nosso tempo. Apostas, expectativas, especulações de toda ordem enchem os jornais, sobretudo quando se trata do Nobel de Literatura, área pela própria natureza afeita a subjetividades de gosto e de polissemias em flor. Ocioso, pois, dizer que a Academia Sueca tem razões que os próprios escritores e leitores desconhecem. O charme de surpreender faz parte do jogo e multiplica o prestígio. Como quer que seja, uma coisa é certa: à falta de sempre fazer jus, o Nobel faz luz sobre seus laureados.

O britânico Kazuo Ishiguro, o mais recente Nobel de Literatura, parece juntar a discrição inglesa àquela de sua origem nipônica. Não era um virgem de altas honrarias (de resto, poucos são). Seu Nobel foi precedido da Ordem do Império Britânico e pelo Man Booker Prize, ou seja, por um reconhecimento nacional e internacional. Discreto, mas não exatamente “posto em sossego”, Ishiguro já vinha tendo seus livros traduzidos para dezenas de línguas e países, a exemplo do próprio Brasil, onde já vem sendo publicado há muitos anos.

Embora eu o conhecesse de nome, nunca o havia lido. A Academia Sueca atiçou minha curiosidade menos pela concessão do prêmio que pela descrição do autor como “um misto de Kafka e Jane Austen e um pouco de Proust”. Pra dizer toda a verdade, confesso, como proustiano devoto, que foi esse “pouco de Proust” que atraiu a minha atenção. Para mim, bastou essa pitada proustiana para de logo simpatizar com o autor.

Enfim, comprei o livro que é considerado a obra-prima de Ishiguro: “Os vestígios do dia” (não conheço o filme). Antecipo que, pelo menos nessa obra, os vestígios de Proust são pouco perceptíveis. Mas cabe recurso, como dizem os operadores do Direito. Também não vi no romance pitadas ou sinais de Kafka ou Jane Austen, o que não desautoriza a Academia, já que podem estar em outras obras do autor. Ignorância minha. Cabe recurso…

O enredo é simples. O mordomo Steven, após uma longa e bem-sucedida trajetória profissional, recorda vários momentos de sua vida. Servira a Lord Darlington, já falecido e senhor de grande prestígio nos bastidores da alta política inglesa, e no momento serve a um milionário americano na mesma imensa propriedade. É o novo patrão que o estimula a sair de férias numa viagem de carro pelo interior da Inglaterra. Suas reflexões e suas visões do passado vêm justamente na esteira desse périplo pela própria terra que mal conhece. Mas a viagem no espaço se torna uma viagem no tempo, ou seja, no tempo passado, no qual a luz da memória busca compreender a vida já vivida. A memória, assim, é mais que recordação, pois busca ligar os pontos de possíveis e imaginárias figuras da própria experiência.

Será pelo ponto de vista desse mordomo tão profissional quanto apolíneo que veremos os fragmentos cruciais (cruciais como signos) não só de sua vida como da própria atmosfera política europeia dos anos de ascensão do nazifascismo (o próprio Joachim von Ribbentrop, ministro de Relações Exteriores da Alemanha nazista, foi um interlocutor frequente de seu antigo patrão). Será esse o sombrio pano de fundo que o escritor explora como um contraponto às escolhas individuais (no caso, as do aristocrático Lord Darlington, simpatizante do nazismo), nem sempre claras e corretas no calor dos fatos. Como julgar? — eis uma das muitas perguntas que o escritor pendura em suas famosas elipses.

Já Steven, o mordomo, formal e técnico como convém à sua profissão, parece-nos tão somente a encarnação da Ordem; por isso, em sua memória, que a viagem libera, afloram seus silêncios e sua gentil indiferença. É como se sua empatia com a realidade só chegasse tarde demais. Mas, metido no terno rígido de um diplomático e solícito papel de mordomo, o que poderia Steven ter feito? Como em Proust, a consciência floresce e se acende apenas na solidão de cada um, na câmara escura onde se revela a chapa fotográfica da realidade.

Em “Os vestígios do dia”, Ishiguro nos mostra, como Guimarães Rosa, que “no silêncio nunca há silêncio”; e, como Freud, que o recalcado nos adoece ou perturba. Na terapêutica e metafórica viagem de Steven, há uma demanda oculta a nos exigir não apenas novos entendimentos do passado, mas nova consciência do presente. Por outro lado, na metáfora da noite que cai, no fim da narração, em contraponto ao dia que morre, será preciso enfrentarmos o que o dia e a vigília nos deixam como indícios, sinais, sintomas, vestígios. À Literatura cabe apontá-los; aos leitores, ligar esses pontos entre si. É na solidão da noite que chega que nos tomam a alegria e a libertação de enfim compreender. A viagem de Seteven é, a seu modo, uma viagem iniciática.

É claro que a culpa é do mordomo.  “Felix culpa”.

Paulo Gustavo, 23 de outubro de 2017