Fernando Dourado

beyond femme fatale by Anne M. Hockens.

beyond femme fatale by Anne M. Hockens.

A caminho de Paris, ainda adolescente, driblei a morte pela primeira vez. Isso porque, recebida a luz verde de meu pai para comprar a passagem que me traria à Cidade-Luz, aos quinze anos, algo aconteceu. Foi assim: eu já estava de saída para o escritório da Varig na avenida Guararapes, centro do Recife, onde confirmaria o lugar que reservara no voo do dia 11 de julho de 1973, entre o Rio de Janeiro e Orly. Com o cadastro do crediário aprovado; a papelada assinada e de posse da autorização do Juizado de Menores – expedida pela amiga de mamãe, Miriam Guerra -, só restava liberar a emissão da passagem, à época feita manualmente. Com ela no bolso, estava carimbado o passaporte para conhecer a “Rainha do Mundo”, talhada na medida para minha tresloucada fantasia juvenil. Tudo o que não queria era que quaisquer intercorrências pudessem me desviar um grau que fosse daquele projeto tão bem delineado. E, no entanto…

E no entanto, o telefone da sala tocou. Estando sozinho em casa, já chamando o velho elevador bufante do edifício Capibaribe, resolvi atender a chamada, exercício que me desagrada até hoje. Era da TAP que ligavam, pois sim. Do outro lado da linha, a voz de um camarada ligeiramente calvo, bochechas coradas e ares agalegados, me dava uma boa notícia, talvez em retribuição às muitas visitas de pedido de cotação que eu lhe fizera nos últimos meses. Disse ele que me conseguira um lugar para Paris, via Lisboa, para a noite de 28 de junho. Será que eu estava interessado? Ora, para mim era perfeito. Com aquela possibilidade, ganharia duas semanas inteiras no destino. Ademais, não precisaria viajar para o sudeste para tomar um avião. Do Recife, alçaria voo direto para o Velho Mundo. Como a financeira do crediário era a mesma, tudo estava à mão. Telefonei para papai dando a boa nova e fui correndo para o escritório gelado da TAP, um aquário de esquina na Guararapes com a avenida Dantas Barreto.

O voo foi perfeito. Até hoje, quando se abrem as portas do avião e somos tomados pelo cheiro de querosene das pistas, logo me vem o aeroporto de Lisboa à mente, minha primeira escala internacional. Em Orly, o primo Luciano me aguardava. Será que ele diminuíra de estatura ou fora eu que espichara? Alojamo-nos em casa, no conforto da mansarda de Madame Houssay que vivia na rue Saint-Simon, na esquina com o boulevard Saint-Germain, e, sem perder tempo, logo após o primeiro passeio pelas ruelas do Quartier Latin, fomos pagar a inscrição para o curso de verão da Sorbonne, onde entramos pela porta da rue Saint-Jacques. As imediações do boulevard Saint-Michel, o Boul Mich, como era moda chamá-lo à época, passaram a ser meu território. E tudo ia muito bem até que, no dia 13 de julho, depois de uma manhã dedicada a dissecar um imenso parágrafo de Proust, saí para um encontro no Jardim do Luxemburgo, em torno de seu famoso tanque. Então vi aquilo.

Do que se tratava? De um jornal mural chamado France Soir, dado ao sensacionalismo e afixado na parada Cluny, como era comum na época. Na primeira página, se via a foto de uma fuselagem calcinada e, no alto, um símbolo familiar, logo ali naquelas paisagens onde quase tudo era novo. Acerquei-me para enxergar melhor. Era sim o logotipo da Varig, então um justo orgulho brasileiro.  Ao lado da foto do vespertino, uma pequena legenda: “Entre os 112 passageiros mortos, Agostinho dos Santos era um dos cantores mais queridos do Brasil”. Não foi de imediato que associei os fatos. Foi só ao chegar à estação de metrô Sèvres-Babylone para fazer uma chamada gratuita para o Brasil do orelhão avariado – onde nos apresentávamos por ordem de chegada, sem fila, para não chamar a atenção – que me ocorreu que era para eu estar naquele voo. O telefonema de Paulo Granja, da TAP, me livrara da morte e, por assim dizer, eu acabara de renascer. Sorte minha que o elevador do edifício Capibaribe era arfante como um asmático.

*

A euforia dos exilados brasileiros com a morte de Filinto Müller, então senador e passageiro da primeira fila do voo malsinado, transformou o baile do 14 de julho da Place de la Contrescarpe em efusiva celebração. Dançávamos fazendo trenzinhos humanos em enviesados circuitos por entre as mesas e, apesar de meio chateado com uma situação que por pouco não me ceifara a vida, aderi ao entusiasmo. Mais precisamente até que um homem careca me segurou a mão na grande roda que se formou. Meu primo sorriu e fiz leitura labial, dado o barulho. Sabia eu quem era o cara? Não. Yul Brynner, ora essa. Eu pouco estava me importando. Preocupava-me mais minha reputação. Mão de homem a gente só pegava para cumprimentar, desarmar ou salvá-lo da fatalidade.  Devolvi-lhe o sorriso como pude e peguei a mão de Angela Collier, cunhada de Luciano.

O resto da temporada transcorreu sem incidentes, salvo talvez pelo advento de Thérèse. Tudo se passou conforme o que segue. Numa tarde de sábado, vi uma balzaquiana de belos óculos escuros e insinuante roupa branca, deitada sobre o cais da ponte Alma, sob a sombra da Torre Eiffel. De súbito interessado por aquele suculento pitéu gaulês, me aproximei e, com muita cara de pau, lhe perguntei as horas. Ela olhou para meu relógio e sorriu, arreganhando as gengivas um pouco protuberantes. Mas e daí? Levantou-se preguiçosamente, com ares de gata hibernada que migra para o cio, e perguntou se eu conhecia o “Caminho dos Cisnes”, logo depois da ponte Bir-Hakein. Lá chegando, comprou uma gauffre polvilhada de açúcar e, me pegando pela nuca, me deu um beijo que não sei quanto tempo durou.  “Aliás, são cinco da tarde, mon amour.O mesmo horário que teu relógio está marcando”, disse com ar zombeteiro, mais de uma hora depois de minha abordagem.

Com uma mulher a tiracolo, pouco importava que ela tivesse o dobro de minha idade, eu estava a caráter na cidade encantadora. Gostei dela. Os cabelos ruivos em desalinho, o azinhavre do suor, o cheiro de nicotina e a higiene precária das partes mais recônditas não me incomodavam, pois namorar naquela língua não tinha preço. Os seios redondos e rosados e a necessidade de ser explorada com um despudor que beirava o patológico, levava os passantes a nos escrutinar com censura. Insolente, eu lhes perguntava: “Qu´est-ce qu ´il y a?” Ela parecia se derreter diante de virilidade tão descabida. “Calme-toi, mon homme. Ce sont des cons”. Os filmes do momento eram “O último tango em Paris” e “Sopro no coração”, ambos excitantes e belos. Ela adorava me masturbar em lugares públicos. E eu tinha então uma enorme dificuldade em dizer não a uma mulher.  Aliás, quem se liberta plenamente dessas peias culturais?

Meu primo me prevenira que não levasse ninguém para casa. Madame Houssay, sua benfeitora,  tinha quadros valiosos que os marchands já conheciam de longa data, um deles de Madame Récamier, refastelada num canapé, figura mítica de quem ela descendia. E era no verão que os arrombadores vinham atrás do butim, sabendo que ela fora respirar os ares rarefeitos da Alta-Savoia. Um dia alguém entrou na sala e saí pronto para esfaquear o imprudente e lutar por minha honra. A cidadela não podia cair sob meu comando. Mas era só o neto da Madame que, fazendo serviço militar, tinha a chave para um pernoite em trânsito. Meu alívio ao conhecê-lo foi imenso. Contei-lhe dos quadros e ele riu, benevolente, dizendo que havia algum exagero nessas lendas de família. Se havia dúvida quanto à sua nobreza, contudo, ela se dissipou no instante em que ele se empenhou em negá-la. Certo é que nunca levei Thérèse até lá e sempre dei pistas falsas quanto a meu endereço. Passamos a nos ver pelos lados do metrô Convention e um belo dia, sumi. Parafraseando o filme, ainda hoje imagino “como era gostosa minha francesa”.

*

Quarenta e três anos depois daquelas manhãs que passava no anfiteatro Richilieu e, com um olhar espichado para o burburinho das ruas, aturava as aulas de análise sintática, Paris se tornou uma velha amante, dessas que visito para trocar um dedo de prosa e tomar um chá de gengibre com bolo de mel. É uma jovem adulta, bastante madura, por quem tenho muita ternura e com quem já não faço muito sexo, mas que reencontro sempre com um sorriso benevolente nos lábios. Certo é que não mais nos jogamos despudoradamente nos braços um do outro e arrancamos as roupas entre a sala e o quarto, deixando um rastro de cueca, sutiã e calças amarfanhadas pelo corredor. A temperatura do casal que nos tornamos passa por uma cumplicidade serena, permeada por incursões às praças e pela contemplação de flores de tons cambiantes.

Excetuadas as pautas profissionais mais feéricas, tudo se dá com extrema serenidade entre nós. Hospedado em discretos hotéis da Porte D´Orléans, passeio pelo bairro para levar as camisas ao tintureiro chinês da avenue Jean Moulin.  Bem ao lado, aproveito a presença de um traîteur asiático e como um trivial almoço cantonês bem executado, antes de atravessar a avenida para comprar ameixas e clementinas, ainda feias nessa época do ano. Não raro vou comê-las no parque Montsouris, o favorito de Lênin. De posse dos jornais, sacolejo no metrô até a rue du Bac, minha primeira e eterna estação, e de lá caminho até a livraria L´écume des pages, vizinha ao Flore, onde sento a uma mesinha externa. Vendo a fachada da Brasserie Lipp, lembro o dia em lá dividi a mesa com Fellini.

Não preciso pedir perdão a Hemingway, mas Paris já foi mais festiva quando não tínhamos essa tremenda afluência de elementos hostis que querem fazer de suas ruas o palco de chacinas, sendo ela um inexcedível cenário de beleza. Para meu sossego, ao me ater a uma parte da cidade onde praticamente não há turistas, me sinto tão seguro quanto se estivesse na Escandinávia. De resto, há quarenta anos que não subo na Torre Eiffel; nunca fui às Catacumbas e só entrei uma vez na Madeleine. Da única feita que visitei as Galeries Lafayette, foi para mostrá-las a papai. Ao Louvre, só voltaria amarrado. É certo que amo flanar no Marais e nos bairros populares do leste onde sobrevive uma ou outra quermesse mambembe, dessas que vemos em Carpentras ou Cavaillon, lá onde lateja a França rural e profunda.

Não são poucas as vezes que sobrevoo Paris a caminho de algum aeroporto além do Reno e, contemplando-a lá de cima, não sinto quaisquer laivos de saudade. Outras tantas ocasiões, passados mais de cem dias sem me entregar às suas ruas, ao cais desfolhado do Sena assinalando o outono, pois bem, nessas horas o corpo da velha amante apela a todos os sentidos e vou em busca de seu regaço como um desesperado que não vive sem seus cheiros: o do metrô, o das castanhas assadas e dos restaurantes que sevem comida nas calçadas mais belas do mundo. Aqui pertinho, no campo de cebolas onde o avião da Varig fumegou, tudo poderia ter ficado só no projeto e lá teria eu morrido aos 15 anos, asfixiado pela fumaça preta letal. Mas um telefonema me salvou de um fim precoce que, em alguma medida, poderia ter mudado a vida de muita gente. Em breve, terei completado 45 de prorrogação. Como diz a canção: Merci, madame la vie… 

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