Maria Amélia Enríquez

Mais do que uma crise meramente econômica, que se autolimita pelo ciclo dos negócios, todo o desenrolar dos fatos demonstra que o Brasil está atravessando algo bem mais profundo, que tem a ver com valores, com confiança e com perspectiva de futuro, temas que moldam as bases do modelo de reprodução da vida social e material contemporânea.

É provável que na base desta tensão esteja a necessidade de consumo em uma sociedade absurdamente marcada pela desigualdade, com poder de compra tão assimétrico.  A expressão maior dessa cultura tem-se revelado na “Operação Lava Jato” que mais do que desnudou a “microfísica da corrupção” no país, ao escancarar as mais diversas e inventivas formas já entranhadas em praticamente todas as instituições. O que alimenta essa cultura de corrupção não são valores assentados na solidariedade, na generosidade e na preocupação em construir uma sociedade mais próspera. O que está na base dessa conduta é o comportamento egocêntrico, a ganância, a ânsia de bem-estar individual a qualquer custo, mesmo que isso signifique passar por cima da integridade ambiental, do respeito aos direitos humanos e da ruína do entorno social em que o individuo se encontra, o que gera a cultura dos carros blindados.

Robert Putman, ao analisar nos anos 1980 os efeitos tão díspares que uma mesma política nacional exerceu no Norte (positivamente) e Sul (negativamente) da Itália, verificou que no Sul daquele país, que era bem mais atrasado econômica e socialmente, predominavam relações baseadas no favorecimento de familiares ou protegidos, o que denominou de “familismo amoral”, que é a antítese de uma perspectiva mais horizontal de sociedade, em que o acesso aos cargos públicos ocorre com base na meritocracia, na competência e na eficiência. Em outras palavras,  o que predominava naquela região era a cultura da “farinha pouca, meu pirão primeiro”, daí a política de desenvolvimento não ter atingido bom resultado. Uma sociedade assim dificilmente gera vínculos de confiança, tão essenciais para assegurar relações estáveis e duradouras, que é condição indispensável para o fortalecimento social e econômico. Qualquer semelhança com o que se passa com o Brasil não é mera coincidência.

Em uma sociedade democrática, mas profundamente desigual como a brasileira, e, além disso, onde essa característica é ainda mais extremada em suas expressões regionais, como uma espécie de colonialismo doméstico, não é uma tarefa fácil construir consenso em torno de uma perspectiva de futuro comum que beneficie a todos indistintamente. Será preciso fazer escolhas difíceis, alguém terá de reduzir seu espaço para que o outro possa emergir. Há que haver concessões, que definir critérios de prioridades, que construir entendimentos mínimos para determinar qual rumo seguir. Nesse rumo não há como todos serem contemplados da mesma forma, senão as desigualdades se perpetuarão ad eternum. Wilkinson e Pickett, no seminal livro “The Spirit Level”, deixam bem claro que, pior do que a pobreza, é a desigualdade, pois ela está na base da grande maioria das mazelas sociais, pelo sentimento de humilhação, de rancor e de ausência da justiça que provoca, gerando ódios, ressentimentos e grande descontentamento, que se traduzem em criminalidade, depressão, delinquência e outros tantos males sociais.

Os desafios, portanto, não são simples, nem tranquilos, muito menos fáceis de serem administrados. Exigem uma completa reconfiguração que restaure valores de generosidade e de confiança no amanhã; que possa imprimir uma nova cultura ao país que queremos edificar, para que bons frutos possam se colhidos no futuro. Não é, de forma alguma, uma tarefa individual, nem de um setor, nem de uma classe. É uma tarefa da sociedade, consciente de suas contradições, suas assimetrias, mas comprometida em mudar, em fazer diferente e melhor. Para conduzir esse processo social precisamos de liderança, de comprometimento e de engajamento.