
Tartaruga
Santo Tomás de Aquino (1225/1226–1274), o famoso “Doutor Angelicus”, é provavelmente o mais conhecido dos filósofos aristotélicos. Bertrand Russell, em sua conhecida “História da Filosofia Ocidental”, elogia-o ao afirmar que “Aquino, ao contrário de seus predecessores, possuía conhecimento realmente competente de Aristóteles”. Sua originalidade, diz Russell, fica “demonstrada por sua adaptação de Aristóteles ao dogma cristão”.
Pois bem, antes de filósofo e de santo, em seus verdes anos, Aquino, diz sua legenda, sofreu o que hoje chamamos de “bullying”. Por ser caladão e ter um temperamento solitário, os colegas não o deixavam em paz, chamando-o sempre de… Boi Mudo. Imaginem. Isso não é coisa que se faça com um santo, embora santos sejam testados em sua paciência. No caso de Aquino, conta-se (e tal deve ser uma elaboração posterior ao soerguimento de sua filosofia) que um superior dizia aos colegas provocadores: “Esse boi ainda dará mugidos que assombrarão o mundo!”. Como quer que seja, o Boi Mudo entrou em ruminações filosóficas que o alçaram às máximas glórias, haja vista o seu “opus magnum”: a “Suma Teológica”, tão imortal quanto volumosa. Enfim, por esse “santo” exemplo, o bullying não é de hoje, o que de modo algum o justifica.
Salto agora desse médico de almas para um grande médico neurologista brasileiro. E já que falei de um filósofo santo, contarei o “milagre”, como diz antigo ditado popular, sem dizer o “santo”. “Santo” este a quem sou profundamente grato. Eis a história. Em 2015, no Rio de Janeiro, fiz-lhe, no seu consultório no Leblon, duas visitas: uma para de fato consultá-lo, outra para, após bem-sucedida cirurgia com outro importante médico seu amigo, agradecer sua orientação profissional. Hoje falecido, pertencia à Academia Nacional de Medicina, era um “Professor Emérito”, ganhou um grande prêmio e foi tão importante mestre que seus alunos chegaram a criar uma associação de ex-discípulos.
Acompanhado de minha esposa, adentrei ao consultório. Acolhedor e já com risonha cara de avô, andava pelos seus 74. Não tardou que eu notasse em sua mesa de trabalho um bando de… tartaruguinhas. Era impossível ignorá-las. Uma bela e diversificada coleção! Outros, não eu, terão ali sido discretos. Mas tenho uma queda por coleções (das quais já se disse ser um hábito infantil). Minha língua coçou e não resisti: em vez de abordar meu problema de saúde, falei inicialmente das numerosas e pequenas tartarugas que estava vendo em assembleia sobre a mesa. Naturalmente, outras pessoas já teriam ficado curiosas sobre os bichinhos. Ele parece ter gostado do meu interesse. E vejam agora, com uma pitada de boa psicanálise, a bela história que contou.
Menino ainda, na escola, o nosso laureado neurologista sofrera bullying (embora ele não tenha usado a palavra). Se a Tomás de Aquino chamavam de Boi Mudo, no seu caso (vocês já adivinharam) o apelido provocativo e ridicularizante era… Tartaruga! É secular, logo se nota, a invocação de animais para zombar dos outros! Mas por que Tartaruga? O motivo não poderia deixar de ser mencionado. Era o seguinte: sua babá, sempre preocupada em agasalhá-lo, punha constantemente um capote ou casaco grosso em suas costas: pronto, ei-lo tartaruga para os colegas de escola. Um detalhe de sincera gratidão complementava suas palavras e sua coleção de tartaruguinhas: uma foto de sua antiga babá numa prateleira às suas costas, em meio a fotos de família e de gloriosa vida profissional. Ali estava, em seu altar de honra, como ele mesmo apontou, aquela que tanto o protegera e que, involuntariamente, terminara por lhe causar o zombeteiro apelido de Tartaruga.
Acima, pedi uma pitada de boa psicanálise, e agora vocês compreenderam por quê. Por trás da figura da saudosa babá, vemos a mãe ou a ausência dela. Mas essa análise da razão não nos deve calar as razões do coração, para seguirmos a sugestão de Pascal. Penso que poucas vezes na vida vi um testemunho de tanta ternura e gratidão. Ainda que vítima de bullying e, portanto, alvo de zombaria, o nosso médico como que revirara pelo avesso a dor que sofrera: o devotado amor de sua babá o fez vencer o sofrimento, e decerto não apenas o causado pelo bullying. Ele havia transformado a angústia numa cotidiana celebração do afeto que recebera na infância. A pitoresca encenação da infância revigorava seu presente. O amor vencera o bullying e outras solidões. A foto da babá e as inúmeras tartaruguinhas podiam até ser uma cicatriz, mas não exatamente uma dor ainda existente, exceto talvez aquela que tão bem apontou Camões e que vale para todos nós: “a grande dor das coisas que passaram”.
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