Olimpiadas

Olimpiadas

Quando procuramos no Google sobre o que são ou o que significam as Olimpíadas, podemos nos surpreender e cair do pódio onde em vão subimos. Enfim, encontraremos frases como “Contribuir para a construção de um mundo pacífico” e “Fomentar a união entre todas as nações do planeta”. Logo percebemos que há muito mais em jogo (pelo menos, em princípio) que ouro, prata e bronze, há todo um imaginário em que reluz um anseio mítico de unidade e paz. Na verdade, esse edulcorado ideal mal esconde uma contraface do que o esporte também representa.

Em sua conhecida obra “A teoria da classe ociosa”, o economista e sociólogo Thorstein Veblen (1857–1929) analisa o esporte como uma sobrevivência da proeza guerreira. É da vida arcaica do homem primitivo que o esporte tira grande parte de seu apelo, de sua atração. A competição moderna não é outra coisa senão uma ressurreição desses traços predatórios filogenéticos do ser humano. Como escrevi aqui na “Será?” há alguns anos, sob o verniz civilizatório sente-se o pulsar e a energia de tremendas forças atávicas. O incentivo da “cultura pecuniária” move o resto: a indústria esportiva, a mídia, as carreiras dos atletas, o turismo e muito mais.

Não precisamos ser um Veblen ou um Schopenhauer para vermos a dor por baixo das medalhas. Não falo da dor metafísica ou psicológica (que também existem), mas da dor física que sai nos jornais e que parece ir de encontro ao conhecido (e polêmico) lema de que é preciso “Uma mente sã num corpo são”. A imprensa que exalta os “novos heróis e heroínas” felizmente (ou infelizmente, por outro lado) também registra (em especial na mídia escrita e com compreensível parcimônia) a dor dos corpos que, em busca do ouro, da prata e do bronze, buscam, sob os aplausos gerais, superar limites… 

Recentemente li que até pedras nos rins uma atleta havia “conquistado” por conta de treinos draconianos. Já os joelhos de nossa excelente Rebeca são tricampeões em cirurgia. As lesões se multiplicam, as disfunções se ampliam, os excessos se tornam uma vitamina amarga. Aos poucos, apenas pelo que lemos no noticiário, vamos nos afastando do exaltado “corpo são”… A medicina esportiva, ao que parece, salvo melhor juízo, é uma medicina voltada para danos que, ao fim e ao cabo, são danos voluntários,  como se fosse necessário o autoflagelamento nas aras dos deuses esportivos. De resto, é difícil saber se, diante de tal devastação corporal, ainda podemos falar numa “mente sã”… Evidentemente, é inquestionável que o esporte cria um sentido existencial para muitas vidas e canaliza, para o bem e para o mal, uma considerável energia.

Falta às Olimpíadas algo que não pode nos dar: leveza, com exceção dos momentos de abertura. Sobra-lhe tensão, e ao capitalismo interessa essa tensão concorrencial. As famosas três medalhas são, a rigor, como a saída metálica de um injusto e político funil. É difícil entender como tais competições podem significar aquele falado anseio “por um mundo unido e pacífico”. Digamos que tal anseio se encontra apenas como um esmalte espetacular e diplomático nas aberturas monumentais. De minha parte, confesso que me desapontei com a abertura parisiense, não porque trouxe polêmica e certa exuberância circense, mas porque foi à custa do Sena e do que a cidade representa culturalmente. A propósito, tomo a liberdade de lembrar, com a devida vênia, que uma das imagens imorredouras da capital francesa saiu da pena de um alemão: Walter Benjamin, ao perceber Paris como “[…] um grande salão de biblioteca atravessado pelo Sena”. 

As Olimpíadas são medalhas que doem. Doem na carne, nos músculos, nos ligamentos estropiados, nos corações que se partem. O importante é competir, mas só os derrotados sabem o peso que uma medalha pode ter. Em certas fisionomias, quando o ouro se transforma em prata ou em simples bronze, não há como não ver o desapontamento. É no ouro que se concentra todo o mito: a altura no pódio, o aplauso universal, a luz que brilha e desfaz as trevas, o ingresso num seletíssimo clube. Talvez um ouro de Midas.

Se, como disse o crítico inglês Terry Eagleton, no seu livro “O sentido da vida”, o esporte é hoje “o verdadeiro ópio do povo” (a começar pelo futebol, claro), e não a religião, o que dizer das Olimpíadas senão que são um êxtase supremo e mundial? Talvez uma antevisão do paraíso, embora um paraíso repleto de lesões, pancadas, pedras nos rins, cirurgias em série, frustrações a granel, “ferocidades emulativas” (Veblen), com médicos e fisioterapeutas sempre a postos, com vibrantes narradores esportivos a encher páginas e vídeos de uma fecundidade verbal que afogaria Camões e poria no purgatório o divino Dante.