O Facebook é uma das evidências definitivas da transição de um mundo baseado nas relações face a face, expressão cunhada pela sociologia e logo estendida à linguagem corrente, para as relações virtuais. Trocando isso nos meus miúdos, deixamos de nos encontrar, de nos ver e tocar materialmente para nos relacionar como signos verbais e imagéticos, ou ainda audiovisuais. Por isso o Facebook é a grande esquina global onde todos se cruzam, se veem e se falam sem sequer precisar levantar-se da cadeira. Basta agora um clique no mouse e logo todos nos conectamos, nos fazemos milagrosamente presentes, não obstante ausentes, fechados cada um na sua ilha ou casulo.
Todos os dias vejo e converso com pessoas que nunca encontro. Estou só, cada vez mais só, e todavia povoado, aturdido por vozes e imagens, textos e palavras que já não vivo como um estado de vivência alucinada, mas como o novo estado de normalidade e modo de ser inventado pela tecnologia digital. Aprendemos a prescindir do outro e a lavrar ainda mais fundo nosso egoísmo e solidão porque nos tornamos essa inefável figura remota e imediata, ausente e presente, solidária e indiferente, ávida de vida e notícia e todavia aridamente entediada. A revolução que nos refaz é tão inusitada e contraditória que corrói as categorias lógicas mediante as quais a linguagem expressava a identidade e a contradição, as noções de espaço e tempo, de velocidade e duração. Em suma, estamos todos aprendendo a ser outro a cada dia. As condições do ser e do tempo foram viradas de ponta cabeça e não sabemos ainda o que fazer deste admirável mundo novo.
Embora declare minha incompetência que tem algo de geracional para lidar com a tecnologia digital, longe de mim pintar o Facebook com tintas sujas e paletas tortas. Aliás, se assim procedesse seria apenas contraditório de modo inconsequente. Pois não sou parte da rede, não me conecto quase diariamente para saber dos amigos, próximos e remotos, íntimos e estranhos? Apesar de ser um navegante bem seletivo e inconstante, tenho olhar atento para captar tudo que me parece interessante, inteligente, tudo que confere sentido e presença às pessoas que amo – agora virtualmente, vá lá, mas antes isso do que nada.
Cadastrei-me no Facebook por sugestão de um amigo. Além de ser incompetente para fazer essas coisas, ele me deu um conselho muito razoável: como tenho um blog e quero ser lido, então deveria cadastrar-me para postar o link de tudo que publico no blog. Segui o conselho com uma intenção, mas, como é freqüente, a realidade engendrou outras – ou outros efeitos, melhor direi. Bem pouca gente freqüenta meu blog, mas em compensação acabei sabendo do paradeiro de amigos há muito desaparecidos da minha vida. Passei a saber onde estão, com quem estão, o que comem, o que opinam e tudo que expõem na vasta esquina global. Aprendi inclusive a me valer da hiper-exposição da rede para melhor evitar quem não desejo, a melhor saber de quem quero, a rir com as postagens que me desatam o riso, a me comover com a beleza que irrompe na telinha numa multiplicidade de formas.
Em suma, encurtando o caminho, pois ninguém mais tem paciência para ler mais de uma página, o Facebook é o que já disse: a grande vitrine ou esquina global do mundo revolucionado pela tecnologia digital. É ainda tribuna, antro de fofoca e narcisismo sem freios ou senso de conveniência, palco de afetos e insultos, de indignação e conformismo. É ainda o palco onde todos nos supomos artistas e portanto importantes. Aqui todos se concedem uma importância indevida, uma relevância que ilude até os mais anônimos. Aqui, como tudo que é invenção humana, planta-se tudo e tudo frutifica, até o que já nasce podre. Há gosto para tudo e desgosto idem. Por isso importa recortar, cada um a seu modo, o seu jardim e lavrar o que resulta em colheita coletiva e portanto incontrolável. Quero dizer, cada um faz o que quer com o jardim alheio: há quem distinga a flor e amorosamente a recolha para enriquecer seu próprio jardim, assim como há quem a esmague ou simplesmente ignore. Somos assim ambivalentes em tudo: no amor como na guerra, no condomínio como no Facebook. Somos o bem e o mal porque estes pólos indissociáveis estão entranhados na nossa natureza. Concorre ainda para agravá-la o fato de que o bem não raro produz o mal e vice-versa. Agora ninguém mais precisa visitar ninguém, pois a internet fundou definitivamente a aldeia global. Se você não gosta, não importa de que ou de quem, basta desconectar. Desconectei.
Já que este texto não é escrito para o mural do Facebook, então posso esticá-lo à vontade. Mas não ao ponto de entediar o típico leitor de blog e revista eletrônica, que nesse contexto é apenas uma variante do feicebuqueiro (que vá o neologismo). Quero dizer, um leitor algo mais paciente, que não larga o autor no meio de uma frase simplesmente porque este excedeu a medida de uma página, não importando sua qualidade. Seguindo uma sugestão de leitura de Fátima Duques, li uma crônica bem curta, mas certeira, de Ronaldo Monte, blogueiro mais experimentado do que eu. Ele critica com humor seco e preciso a diluição do conceito de amizade introduzida pelas redes sociais. É um fato que muito me incomoda. Embora tenha noutro texto deplorado essa nova noção de amizade, o amigo de Facebook, aproprio-me das sugestões oportunas de Ronaldo para acrescentar à minha improvisada caracterização do Facebook um aspecto cuja omissão empobreceria ainda mais minhas ponderações.
Importaria lembrar que a depreciação do conceito de amizade independe em certo grau da erosão afetiva causada pelas redes sociais. Na realidade, ela está entranhada na nossa mentalidade cultural, tendente ao desleixo e inconsequência das relações afetivas. Não é à toa que qualquer estranho, a propósito de tudo ou de nada, bate nas nossas costas e efusivamente nos chama de amigo ou amigão. No Brasil, dentro ou fora das festas e bares, todo mundo é amigo, todo mundo pulveriza na inconsequência das nossas relações este ser tão precioso e raro: o amigo. Outra evidência consiste na leviandade com que nos prometemos visitas e marcamos encontros sem que nunca umas e outros se tornem realidade. São coisas que dizemos por dizer com a inconsciência com que respiramos ou dormimos. Os estrangeiros que conheci ou acolhi no Brasil ficam desorientados quando se apercebem de que os convites e supostas visitas são apenas “para inglês ver”. Nada disso é para valer, assim como uma infinidade de coisas que prometemos e juramos não são para valer. Charles de Gaulle foi muito generoso quando disse a frase que ficou registrada na nossa história: Le Brésil n´est pas un pays sérieux. Antes que me corrijam, já sei que de Gaulle não disse esta frase, assim como sei que Fernando Henrique Cardoso não disse: esqueçam o que escrevi. Flaubert disse que era Madame Bovary, embora não fosse. Ou era. Citar é uma coisa, apurar a veracidade da fonte é outra bem diferente. Fiquemos apenas com as citações.
Ronaldo Monte tem razão quando pisa no pé do Facebook irritado com essa banalização da amizade, que na rede se faz e desfaz com um simples clique no mouse. Mas volto a insistir neste ponto: somos um povo de amizades inconsistentes e fantasiosas. Somos amigos de carnaval, de festas que a troco de nada pipocam em qualquer terreiro ou esquina. Isso diz muito sobre a nossa futilidade e há muito me educou para desconfiar do foguetório dos amigos que me cercam nas circunstâncias convenientes ao egoísmo, à leviandade, ao mero acaso das circunstâncias. Amigo é outra coisa e não se faz no ruído momentâneo das festas e bares. Amigo é jóia rara que precisamos lavrar durante anos, sobretudo nas circunstâncias adversas e até extremas, pois é quando a amizade de fato reponta nas linhas puras da sua raridade.
O Facebook dissolveu o sentido real da amizade, que agora se faz ou refaz num simples clique, mas a cultura brasileira minou há muito, entre festa e batuque, misturando e diluindo cores e afetos, o sentido ontológico da amizade. Quem duvidar que procure um amigo na hora da necessidade, aquela que define quem é quem, quem é amigo ou simples parceiro de copo e de passo carnavalesco. Se amizade não se faz no Facebook, também não se faz num país onde todo mundo é amigo e amigão, onde as crianças aprendem desde os primeiros dias de escola a chamar a professora de tia e tiazinha. Uma cultura que assim socializa suas crianças está lavrando desde a origem o culto da amizade inconseqüente e confundindo amor e amizade com falso parentesco. Portanto, não culpemos o Facebook por males entranhados na nossa cultura que tanto celebramos, como se essa manifestação de amizade fosse algo além da futilidade dos afetos. Quantos estrangeiros não se enganam com esse foguetório, esses braços abertos para a amizade que não passa de festa? Quando a festa acaba e os bares se fecham, quando a escuridão desce sobre nossas vidas, quase sempre descobrimos desamparados que não há e nunca houve nenhum amigo real.
Será? Será mesmo que as pessoas que estão no Face (isto é, as pessoas que se registraram ou abriram uma conta no Facebook) não distinguem entre a ideia tradicional de amigo e a ideia de “amigo de Face”? São duas coisas diferentes: nem conheço a maioria dos meus amigos de Face. Quando alguém pede para ser meu amigo ou amiga, no Face, dou uma checada rápida, e em princípio aceito. Exceto, por exemplo, uns que nem em inglês se comunicavam, nem sei em que caracteres escreviam. Em mensagem em inglês respondi que não adiantava eles fazerem parte da minha rede se não entendiam nada do que eu postava e vice-versa. A resposta deles: NO ENGLISH. Eu continuo achando que “amigo de Face” é outra categoria. Em alguns poucos casos tenho amigos de Face que são também meus amigos/as pessoais. Mas o meu conceito de amizade nunca foi muito latinoamericano. Uma vez uma amiga mexicana, muito amiga mesmo, me pediu uma carta de recomendação para um dado posto. Eu disse que não podia escrever tal carta porque não achava que o perfil dela era adequado para o posto. E veio o choque: nem para uma amiga? Expliquei que jamais recomendaria alguém se não considerasse profissionalmente correta a recomendação. Pois é, amiga de verdade não sou de ninguém. Tenho variantes dessa história, de uma amiga que escreveu um livro que achei muito ruim, e que queria que eu conseguisse para ela o Prefácio de um personagem importante na nossa vida política. Depois de eu afirmar que o livro dela era errado, ela deixou de falar comigo. E antes ela era MUITO amiga mesmo, de verdade, de conversar intimidades, haver solidariedade, ela ficar hospedada na minha casa quando estava na minha cidade.
Do seu texto, belo e bem escrito, mas muito triste, não consegui extrair muito bem qual é esse seu conceito de amizade. É como se você tivesse como ideal a amizade incondicional. Ora, a rigor, nem amor de mãe é incondicional.
Cara Helga: Minha intenção não foi definir um conceito de amizade, embora o desdobramento livre do texto possa dar margem a essa interpretação. Concordo que as pessoas que interagem no Facebook distinguem o sentido tradicional (que identifiquei com a expressão face to face, corrente em velhos estudos da sociologia americana sobre os grupos sociais) e esse hoje dominante, o virtual. Acho que deixo clara essa mudança nas relações pessoais introduzida pela revolução digital. Se derivei para observações antropológicas, digamos assim, relativas a práticas de convívio e amizade típicas da nossa cultura, foi apenas com o propósito de ressaltar que o caráter volátil e inconsequente dessas relações não é uma invenção do Facebook e outros meios de relação virtual.
Também procurei assinalar o caráter ambíguo dessa relação virtual. É certo que ele mais facilmente propicia a inconsequência das relações. Basta desconectar e estamos conversados.Mas ele também tem contrafaces que acho muito positivas.
Talvez você tenha salientado o caráter impreciso da amizade que discuto no texto por não se enquadrar na categoria típica do brasileiro visado pela minha análise. Embora conheça você apenas via Facebook e sobretudo via esta revista, já sei o bastante de você para jamais confundi-la com o tipo leviano e inconsequente esboçado no retrato um tanto tosco que traço da afetividade brasileira. Os exemplos pessoais que você insere no seu comentário são bem esclarecedores e, para mim, muito familiares. Quando ocasionalmente ensaiei publicar alguns artigos e resenhas sobre algumas vacas sagradas da cultura pernambucana, provoquei reações de ressentimento e até ruptura imediatos. O fato de a crítica ser estritamente objetiva não a tornava menos intolerável. Por essas e outras insisto em dizer que no Brasil não existe debate de ideias. Se não me falha a memória, já aludi a isso aqui mesmo no nosso espaço de discussão. Só estranhei o fato de você dizer que meu artigo é muito triste. Talvez você tenha intuído, com aguda intuição de leitora, meus enganos relativos à amizade. Mas nunca concebi nem aspirei à amizade incondicional, Helga. Minhas aspirações foram sempre mais modestas e realistas. Isso não bastou para que não fossem traídas pela realidade. O que mais desejo e tento aprender é aceitar a realidade. Isso me lembra uma frase banal, mas verdadeira, que você usou num dos seus comentários aqui na revista. Você disse que era uma pessoa “feijão com arroz”. Pois saiba que há muito me cansam os idealistas, os utópicos da política, do amor, de tudo que, não importa o quanto nos enganemos ou precisemos nos enganar, acaba domado pela rédea curta da realidade. Acho que já estou divagando, Helga. Muito grato pela leitura que entendo concordar bastante com o que intentei expressar.
Fernando,
Maravilha de ilustração para esse seu texto sempre tão equilibrado. Também me agradaram bastante os pontos aludidos por você e Helga no debate que se seguiu. Quisera poder ajudar mais. Mas sei quando estou diante de um tema estranho, apesar de nutrir alguma curiosidade por ele. Nunca o bastante, contudo, a ponto de ousar entrar nas redes sociais – mundo a que ainda sou totalmente estranho. Vou aderir quando estiver obsoleto, talvez. Aliás, estou logrando outros feitos nessa linha que vão a contracorrente. Esse ano, não atendi celular uma única vez. Aliás, ele esteve desligado o tempo todo e é forte candidato ao lixo. Quanto aos e-mails, os abro por não mais do que duas janelas ao dia e basta. Abraço, meu caro Fernando – figura que sumiu com seus comentários a meus textos e que tanto me alegravam. Talvez porque me tenha tornado provinciano demais, logo não o condeno.
Meu caro Fernando: Desculpe se há algum tempo sumi das páginas de comentário em geral, da sua em particular. É que sou pouco assíduo na internet, um pouco menos na revista, embora paradoxalmente assine este artigo sobre a amizade no Facebook. Confesso que fiquei muito surpreso ao saber que você é imune às redes sociais e até ao celular. Digo que isso me parece surpreendente porque, a julgar pelo pouco que sei de você, notadamente através dos seus artigos, você me parece um intelectual cosmopolita, portanto antenado com a linha de ponta do sistema econômico e comunicacional. Um abraço, Fernando, e muito grato pelo comentário.
Sim, triste no sentido que v. entendeu. Seu comentário complementa seu artigo, e fica tudo mais claro.
Tenho uma conta no “face” mas não sou usuário. Ainda gosto de conversar ao vivo e a cores. Sinto-me incomodado, algumas vezes, por haver levado um bom tempo elaborando uma aula, e na hora “h” sou trocado, mesmo com todo o conteúdo técnico em tela e as explicações apresentadas pelo “face”. Apesar disso temos que nos acostumar com essas mudanças sociológicas e, porque não, psicológicas. A tela do celular nos esconde, de certa maneira, da presença de nosso interlocutor. Pode-se mentir, dizer a verdade, curtir algo como o vídeo do atropelamento ou do esfaqueamento de alguém, enfim, encontra-se o paradoxo do desconexo, onde tudo fica sem sentido e tudo faz sentido. Os textos curtos, por outro lado, deixam as pessoas mais objetivas, pois que não se pode digitar textos longos, dá trabalho, e nem apresentar conteúdo complexo, já que não dá audiência, curtições. Enfim, é mais uma das mudanças de nossa sociedade a que temos que passar a conviver, mesmo não gostando. Valeu o texto, como vale a pena ler o conteúdo da Revista.
Caro Antonio Fernando: seu comentário me alerta indiretamente para aspectos complexos das redes sociais omitidos no meu artigo. Como o tema é muito complexo, procurei restringir o artigo aos limites da relação entre o Facebook e a amizade. Não tenho dúvida, porém, de que a difusão onipresente da tecnologia digital gera problemas sociais muito maiores do que o pouco que tentei explorar no meu artigo.
Pois é, Fernando, nem tudo o que reluz é ouro. Até admito que sou bem ligado nas coisas do mundo, mas a vara de pesca é das mais primitivas. Excetuando-se o e-mail e a função mais primitiva do celular, sou miseravelmente alheio a todo o mais. Não saberia mandar uma mensagem por telefone nem sequer gravar um nome na memória do celular. Não sei sequer tirar uma foto pelo telefone e ignoro como se pode colocá-la num iPad, por exemplo. Torço fervorosamente para que um dia alguém diga que fiz a coisa certa. Mas duvido. Aos 57 anos, com os amigos partindo para a aposentadoria, sinto meu network profissional encolher barbaramente e creio que tudo seria melhor se os clientes me achassem pelas redes sociais. Mas a inaptidão e a resistência são patológicas. Fiquei no fax, no Opala (tampouco tenho carro há 20 anos) e no jornal impresso. Em suma, um simulacro de Mujica sem Fusca. E, doravante, sem celular. Só o acionarei para as emergências. Vamos ver no que vai dar. Talvez sobre espaço para os livros, um amor eterno. Abraço, FD
Amigo Fernando, seu texto me leva a duas manifestações:
1ª – Consolidei minha decisão de não entrar no Facebook. Estou na linha do outro Fernando, que lhe brinda com seus comentários, sempre inteligentes. Estou usando apenas o WatsApp, mais para razões de trabalho. E o celular, seletivamente.
2ª – Meu conceito de amizade está na linha de Saint-Exupéry: antes de conceder direitos, ela impõe deveres. Entre eles, o de ser sincero, sem ser agressivo, naturalmente, e recusar “favores” imerecidos, como os que Helga reporta, em seu lúcido comentário. Isso de se chamar todo o mundo de amigo é coisa da tão falada cordialidade brasileira, para mim um tanto inocente. Para o meu conceito de amizade, recorro a textos de Vinícius e de Miguel Torga, o português, que imagino sejam do seu conhecimento.
Seu texto é triste, sim, mas lúcido. Como se diz no jargão jurídico, apenas “comporta temperamentos”.
Grande abraço.
CR
Meu caro Clemente: muito grato pelo comentário. Desculpe a resposta tardia, que justifico esclarecendo que somente agora li seu comentário. Quando escrevi as passagens mais pessoais sobre a amizade não tinha em mente as referências que você nomeia, mas o ensaio de Montaigne sobre a amizade. Friso não tomar a este como parâmetro, já que o próprio autor declara que uma amizade como a que o ligou a vida inteira a Étienne de la Boétie somente ocorre, se ocorrer, uma vez em um século. Ele diz isso ou algo parecido. O ensaio de Montaigne, que sempre releio, é um modelo ideal da amizade. Portanto, algo provavelmente irrealizável. Entendo que você concorda com meus argumentos de base cultural referentes à fragilidade dos nossos vínculos de amizade, Clemente. Notei que você, como Helga, também acha meu artigo triste. Acho que meu tom é antes de constatação. Mas sendo uma constatação tão indesejável e sombria, é razoável a apreciação de vocês. Concordo, por fim, que a amizade é indissociável da sinceridade, embora eu relute em afirmar que amigos nunca mentem. A verdade absoluta talvez seja insuportável para o ser humano, mesmo aquele que persegue o ideal do amor e da amizade como recusa da mentira e da dissimulação.
Permito-me observar: terá sido por acaso que o autor referiu-se, mesmo en passant, ao “admirável mundo novo”? Ou a lembrança do admirável livro velho de Huxley embutiria receios de que o tal Face pavimente a estrada que leva àquelas tenebrosas antevisões? E registrar: assim como a Clemente Rosas, a leitura do excelente Fernando Mota Lima e comentaristas que me antecederam faz-me sedimentar a decisão de não participar desse e outros grupos. Embora por razões mais prosaicas, afinal pragmáticas: aos 74 anos já me falta tempo para o tanto que quero (preciso) conversar com os amigos (inclusive por e-mail — esse, sim indispensável inovação, alternativa mais rápida e cômoda ao correio tradicional), surpreender-me com novos companheiros nos botecos da vida, encantar-me com Beethoven e Paulinho da Viola, Placido Domingo e Renata Jambeiro, Milton Nascimento e Chet Baker, reler algo do melhor que li e não perder as novidades que me atraem (as mais recentes: ‘Hereges’ de Leonardo Padura e ‘A noite de meu bem’ de Ruy Castro). Em tal circunstância e ante tantas exigências, como trocar o prazer certo pelas duvidosas aventuras na citada “esquina do mundo”?
Caro Marco Antônio: respondo com as devidas desculpas pela atenção tardia que concedo a seu comentário. A alusão ao livro de Huxley, um dos marcos da literatura distópica ou antiutópica do séc. xx, não é de modo algum acidental. Escrevi-a com a intenção que você percebeu muito bem. O admirável mundo novo, que Huxley aliás pescou de Shakespeare, é uma forma ligeira de alertar o leitor inteligente, como você, para os aspectos negativos e perigosos da tecnologia digital. Talvez fosse melhor ainda aludir a outra obra da mesma linhagem literária: o 1984, de Orwell, notadamente a teletela. A tecnologia digital não apenas confirmou o controle exercido pelo Estado e as corporações sobre as nossas vidas, mas também tornou a teletela uma metáfora amena, tal é o controle a que estamos submetidos. Isso nada tem a ver com visão apocalíptica do presente. É apenas uma constatação que não posso demonstrar melhor neste espaço. Concordo com sua observação relativa ao e-mail. Este é também para mim a melhor invenção desse mundo digital. Na medida do que posso (infelizmente bem pouco, pois são raros os correspondentes que de fato gostam de escrever como antes a gente escrevia carta) faço e renovo amizades preservando ainda um pouco da privacidade inconcebível em murais e páginas de comentário público. Muito Grato, Marco Antônio.
Pois eu sou dos que gostam do Face (ainda que tenha uma lista grande de objeções). Resisti a entrar até que Luciano Prandini, meu professor de informática, amigo e “amigo de Face”, me inscreveu dizendo: “você tem que dar pelo menos uma olhada em algo que tem mais de um bilhão de participantes no mundo”. Tem de tudo no Face, e concordo que para certas pessoas não pode funcionar. Já tive briga no Face, a ponto de bloquear o interlocutor, e em dois casos recebi carta de homem que o confundia com “site de relacionamento”, ainda não tinha percebido que “pessoa no Face” é algo diferente de “pessoa real”. Na página de Sergio C. Trindade, ex-colega de ONU e agora tanto amigo quanto “amigo de Face”, copiei esse “fado bossa nova” (roubando a expressão de Trindade), A Lista, que é uma versão bem mais linda das queixas do Fernando Mota Lima. https://www.youtube.com/watch?v=aV99ypbCidw Não resisti a uma provocação.
Cara Helga: Começo concordando com você: A lista, de Oswaldo Montenegro, é uma versão bem mais linda do que minhas queixas. Aliás, confesso que nunca ouvi O. Montenegro. Devo isso a você. Não ia me desculpar pela resposta tardia, já que assim procedi, por ordem de leitura, escrevendo antes para Clemente Rosas e Marco Antônio Pontes. Mas aqui vão de qualquer modo minhas desculpas decorrentes de leitura tardia do seu comentário. Embora você conclua frisando apenas “minhas queixas”, um bom contraponto para a canção, você sabe muito bem que meu artigo procura captar, ainda que sumariamente, algumas das múltiplas dimensões do fenômeno Facebook, ou rede social. Ressaltei, ainda, que seria contraditório escrever um artigo restrito àquilo que identifico de negativo no Facebook. Como você, sou parte dele. O que me parece mais importante, também já salientei isso no artigo, é usar esse meio do modo como você e eu usamos: sendo sujeito, não objeto ou instrumento dessas forças e meios que usamos e nos usam. Um abraço e muito grato pelo comentário, Helga.