Sérgio C. Buarque

A incredulidade de São Tomé - Caravaggio

A incredulidade de São Tomé – Caravaggio

Há exatamente um ano jogamos no ar a Revista Será. O nosso propósito, talvez um pouco pretencioso, era de propagar a dúvida nos meios intelectuais como uma reação às ideias dominantes e aos pensamentos excessivamente fechados de diversas correntes intelectuais e políticas no Brasil. Correntes que não dialogam, às vezes até se repelem e não aguentam o desafio de ouvir e confrontar teses e conceitos, sentindo-se por vezes agredidos quanto questionados. A opção da Revista Será pela dúvida tem um princípio epistemológico: o entendimento de que o conhecimento humano é fruto das interrogações, quase sempre incômodas, dos espíritos inquietos e teimosos que se recusam a aceitar as verdades estabelecidas e proclamadas.

Embora as sociedades necessitem de algumas certezas gerais para conduzir a vida cotidiana, estas são o principal obstáculo à descoberta e às inovações do pensamento. Como disse Friedrich Nietzsche, “as convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”. Numa linguagem menos poética do que os aforismas do filósofo, podemos dizer que algumas dúvidas e hipóteses que questionam o saber dominante, vistas como inverdades pelas convicções, são os motores do conhecimento e da criação humana. Enquanto a dúvida abre a cabeça para a novidade, a verdade cega e embrutece. A certeza e as convicções travam o pensamento e a emergência de novas ideias.  A dúvida estimula o conhecimento e a inteligência.

A dúvida gera divergência entre as pessoas. E é do confronto das divergências que se constroem novos saberes e conhecimentos, até mesmo algumas novas verdades, igualmente provisórias, até que outras dúvidas e interrogações reabram o debate e renovem o conhecimento. Claro que existe mérito nas convicções e sua resistência frente ao ataque da artilharia pesada das dúvidas, moderando, forçando o refinamento e a elaboração de novas teorias. O confronto, respeitoso e curioso, entre as dúvidas e as divergências e destas com as convicções, cria as condições criativas que dão origem a novos conhecimentos e inovações.

Por conta disso, o papel do intelectual, como do cientista, não é propagar as certezas e as descobertas, mas, pelo contrário, questiona-las, levantando interrogações e confrontando com as verdades estabelecidas. Como disse Lessing (Gotthold), “o valor do homem não é a verdade, que qualquer pessoa pode possuir ou supõe possuir, mas o empenho sincero que o homem empregou para descobrir a verdade. Pois é por meio da busca pela verdade, e não com a posse desta, que as suas forças se ampliam, e somente nisto consiste a sua perfeição sempre crescente”. A busca pela verdade, nunca atingida, felizmente, inicia-se com a pergunta em torno das verdades consolidadas: Será?

Em outras palavras, como conceituou Ortega y Gasset, o estranhamento é o começo do entendimento, cada um olhando o mundo à sua volta com “os olhos dilatados pela estranheza”. “Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para umas pupilas bem abertas”, levando “o intelectual pelo mundo em perpétua embriaguez de visionário”.

O que vemos hoje no Brasil, e cada vez mais, é uma forte polarização e radicalização do pensamento e das propostas políticas, contaminando o debate com mágoa, ressentimento e certezas ideológicas carregadas de verdades absolutas. É no vazio deixado pela radicalização e intolerância intelectual das diversas certezas que a Revista Será? procura atuar. Perguntando. Questionando. E, de vez em quando, levantando novas ideias e conceitos. E, principalmente, convidando todos à discussão aberta, porém cordial e tolerante com pensamentos diferentes. O presidente José Mujica, no seu recente discurso nas Nações Unidas, afirmava que a tolerância é sempre com os diferentes, nunca com os iguais, tolerância com o pensamento divergente, portanto. Assim, aprendemos.