Luciano Oliveira

Nunca me esqueci dos três nomes mágicos que enfiei na cabeça para fazer uma prova de história, quando era menino: Quéops, Quéfren e Miquerinos. As três grandes pirâmides do Egito. Nunca me esquecerei também do épico Os 10 Mandamentos, de Cecil B. de Mille (assistido pela primeira vez por essa época), onde escravos judeus construíam um daqueles monumentos vergados sob o peso das pedras e das chicotadas dos feitores. Num determinado momento, uma velhinha que passa graxa nos trilhos de remoção dos imensos “tijolos” fica presa entre um enorme bloco de pedra e um buraco onde ele deve se encaixar. Salvá-la significaria atrasar os trabalhos. O feitor não hesita e manda os escravos continuarem a puxar a gigantesca pedra. A velhinha será esmagada. E daí? É mais uma entre os milhares de trabalhadores substituíveis. Aí chega Charlton Heston, fantasiado de príncipe do Egito – ou seja: Moisés! (Que, na verdade, saberemos depois, é o filho da velhinha…) E a velhinha é salva. Graças a um desses milagres produzidos por Hollywood, ainda viverá bastante para entrar na Terra Prometida. Onde Rui, vulgo “Ceará”, não entrou. Mas quem é Rui? Corte de alguns milhares de anos!

Exatos 1958 anos depois de Cristo. No interior do Ceará, Rui, aos 16 anos de idade, foge de casa e pega um pau-de-arara rumo ao Planalto Central do Brasil, onde se constrói a nova capital do país. Vai ser candango. Sua história está relatada no livro do jornalista Edson Beú, Expresso Brasília: a história contada pelos candangos (Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2012). Rui aparece no meio dessas lembranças de infância porque um de seus relatos me remeteu à construção das pirâmides no filme de Cecil B. de Mille: a morte de operários enterrados vivos junto com o concreto vertido nos poços que haviam cavado – “aqueles que realizavam a perigosa tarefa de retirar a sobra de terra acumulada na base das fundações, antes do início da concretagem.” Nenhum desígnio maldoso por trás dessas mortes. Simplesmente a pressa. Os trabalhos tinham prazo para acabar: 21 de abril de 1960. Iniciado apenas três anos antes, o impressionante canteiro de obras funcionava a todo vapor. Nessas condições, todo cuidado, ao contrário do que diz a expressão, era muito. Para enfrentar o desafio, o governo do pragmático Juscelino Kubitschek fazia vistas grossas à legislação trabalhista. Brasília estava numa espécie de limbo jurídico, e a segurança do trabalho era letra morta. Trabalhava-se sem cintos, luvas ou capacetes. Um dos testes utilizados na hora da contratação era fazer o candidato andar em cima de uma viga de “uns 15 centimetrozinhos” de largura, a uns dez metros do solo. “Se o sujeito passasse nela, passava no teste.” E as mortes eram comuns. Um amigo de Rui havia desaparecido no canteiro de obras “depois de ficar três dias seguidos fazendo hora extra”. As fundações dos dois edifícios verticais do Congresso Nacional chegaram a uns 40 metros de profundidade. E, no meio do barulho e da poeira, nem sempre os encarregados da obra se preocupavam em verificar se todos os operários que trabalhavam lá embaixo haviam saído antes de as betoneiras derramarem no poço a mistura de cimento e brita. Talvez o anônimo amigo de Rui lá esteja soterrado para sempre, destino de que escapou a sortuda mãe de Moisés.

A construção de Brasília sempre me intrigou. Não sua história mitológica: o sonho de Dom Bosco, o compromisso de Juscelino ao ser interpelado por um eleitor na campanha presidencial de 1955 etc. Refiro-me à construção mesma. Uma epopéia de grandeza babilônica encravada no cerrado brasileiro nos amenos tempos da Bossa Nova. Conhecemos muito pouco sobre isso (no meu caso, nada, antes de ler o livro de Edson Beú). As imagens que normalmente temos da fabulosa empreitada são as dos cine-jornais da época, igualmente amenas – idílicas como a Sinfonia do Rio de Janeiro de Tom Jobim e Billy Blanco. Era o “ar do tempo”. Juscelino e Niemeyer examinando mapas, o sorridente presidente confraternizando com os peões etc. O produto final, claro, é esplêndido. Quem, postado na rodoviária de Brasília, num dia de céu azul, já contemplou a Esplanada dos Ministérios com a Praça dos Três Poderes ao fundo, terá visto um dos espetáculos mais deslumbrantes que o engenho humano é capaz de construir. As colunas sinuosas do Planalto, do Supremo e do Alvorada merecem uma interjeição! Darcy Ribeiro, num de seus arroubos, disse certa vez que era o que de mais belo havia sido inventado desde as colunas gregas. Mesmo dado ao delírio, acho que aqui Darcy não exagerou. E as duas cúpulas do Congresso? Uma “xícara” virada para cima e outra emborcada. Na linguagem dos candangos, pareciam dois “cacos de coco”. Como diria João Cabral, “o engenheiro sonha”… Mas do outro lado do sonho havia o pesadelo.

Tenho a impressão de que acabei de escrever uma frase de efeito. Mas não exagerada. Os candangos viviam como viviam na época e vivem ainda hoje muitos miseráveis brasileiros, ajeitando-se em barracos de restos de madeira e papelão, e o alcoolismo e a violência faziam parte do seu cotidiano. Inclusive a violência policial – a qual, contrariamente a certo lugar comum confortável para a boa consciência da democracia brasileira, não é uma “herança maldita” da ditadura militar. A prática de torturar e de executar sumariamente delinquentes (ou suspeitos de sê-lo), no Brasil, vem de longuíssima data. Quem não se lembra do famoso “Esquadrão da Morte”? Tal iniquidade remonta aos anos 50, na aprazível cidade do Rio de Janeiro da Bossa Nova, quando, na Secretaria de Segurança Pública do então Distrito Federal (sendo presidente da república o mesmo sorridente JK), se criou um grupo conhecido como “homens de ouro”, uma unidade da polícia encarregada de limpar a cidade dos seus bandidos.

Pois bem. Para suprir a falta de policiamento no canteiro de obras, o governo criou a Guarda Especial de Brasília, a GEB, “sigla que viraria sinônimo de violência e de todo tipo de atrocidade”. Em 1959, em pleno domingo de carnaval, enquanto o resto do país caía na folia, os operários de uma construtora “embrulhavam o estômago na fila da boia”. Houve uma insurreição. Chamada, a GEB enviou alguns homens. No entrevero que se seguiu, os “gebianos” foram enxotados pelos operários em bem maior número. Os peões comemoraram a vitória, mas os milicianos não se deixariam desmoralizar sem troco. E ele veio. Tarde da noite desse mesmo dia, desembarcou um comboio de homens armados no acampamento dos peões e “saíram atirando à queima-roupa”. Quando os tiros cessaram, “um silêncio de morte se espalhou pelo acampamento. Dizem que a luz se apagou (ou foi apagada) durante o tiroteio. Com isso, ninguém de fora pôde contar o número de vítimas”. Não creio estar exagerando se observar que o mesmo padrão homicida será encontrado muitos anos mais tarde em massacres como o de Vigário Geral ou do Carandiru… O buraco do “Brasil Profundo”, com efeito, é mais embaixo.

E Rui foi vivendo sua vida de peão. Terminada a construção, “à medida que a capital ia ocupando seus espaços, eles eram empurrados cada vez mais para a periferia.” Os que teimavam em ficar, eram enxotados em conformidade com nossa tradição mais truculenta: na base da polícia e do trator – só que não havia cobertura da imprensa. Todos nós já ouvimos falar na Ceilândia. É hoje a maior cidade-satélite de Brasília. Isso todos sabemos. Só não sabia, pelo menos eu, que o topônimo vem da sigla CEI – Campanha de Erradicação de Invasões. O nome da instituição dispensa qualquer comentário. É para lá (como, no Rio, aconteceu com a Cidade de Deus) que foram removidos os candangos que moravam em favelas. “A utopia de ver contínuos e funcionários da mais alta hierarquia da República trocando ‘bom-dia’ sob os mesmos pilotis só cabia na prancheta dos arquitetos”. Passado o tempo, as áreas negadas a ferro e fogo aos candangos, e que a princípio seriam destinadas a um “cinturão verde” para tornar Brasília menos dependente dos produtos hortigranjeiros do sudeste, seriam ocupadas pelos condomínios particulares. Eles, sim, invasores, pois vieram depois de Rui. Brasil-sil-sil!

Em 1985, já na Nova República de Tancredo Neves que terminou na mão de José Sarney, Rui, doente e envelhecido precocemente pelo álcool, voltou para o Ceará. O Brasil mudou muito desde que ele saiu do sertão em busca da Terra Prometida, onde terminou não entrando. (Mas, pensando bem, Moisés também não entrou.) Como, felizmente, não existem apenas notícias ruins, há nessa volta um detalhe a indicar que, no final das contas, o país melhorou as condições de vida dos seus cidadãos mais pobres em vários aspectos. Em 1958, Rui foi do Ceará para Brasília num pau-de-arara; em 1985, fez a viagem de volta num ônibus – com ar condicionado. Hoje, provavelmente, voltaria de avião…