Tarcisio Patricio de Araujo (*)

Ilustração do Livro de George Orwell A Revolução dos Bichos.

Ilustração do Livro de George Orwell A Revolução dos Bichos.

O argumento básico de defesa de governos do PT e do lulismo, por qualquer militante petista-padrão, quando se discute o ciclo de corrupção iniciado em 2003, é: mas no “governo FHC…” e por aí vai. Claro, o PT não inventou a corrupção – tanto quanto não foi o criador de políticas sociais “em favor do povo” (bolsa-família como tema-chave). Mas grupos do PT não se tornaram praticantes dos atos hoje bastante conhecidos só depois que o partido se tornou governo. Sabe-se que, desde pelos menos 1989/1990, prefeituras sob comando do PT (ABC paulista como exemplo) já estavam engolfadas em esquemas do chamado Caixa 2, que incidentalmente levaram ao assassinato, em 2002, de Celso Daniel, então prefeito de Santo André, SP – por discordância com o fato de que alguns “companheiros” estavam fazendo usufruto pessoal do apurado. Diz a crônica disponível que o advogado Roberto Teixeira (que cede apartamentos a Lula e filhos) era pessoa chave no esquema de então. Ler depoimentos de Hélio Bicudo, Paulo de Tarso Venceslau, Cesar Benjamin, Plinio de Arruda Sampaio – entre outros fundadores e, depois, desistentes do PT – é algo muito instrutivo.

O referido argumento básico tem como rationale estabelecer o denominador comum de que “é tudo a mesma coisa”, preceito que grassa na visão popular. Minha avaliação – a partir de tudo que venho lendo a respeito do lulismo (livros e crônica policial) – é de que se trata de maior escala e de estratégia bem definida de manutenção de poder, com o molho “revolucionário” que justifica os meios. Não diria que é assim para todo militante e para as bases do PT; mas possivelmente isso está no arrazoado alimentado por José Dirceu e outros. Mas, supondo-se que fosse “a mesma coisa”, ainda assim haveria uma diferença: o mesmo PT que não assinou a Constituição de 1988, condenou o Plano Real e foi contra a Lei de Responsabilidade Fiscal é o que incluía combate à corrupção entre as bandeiras políticas brandidas em muitas manifestações; o mesmo que prometeu um “novo modo de governar” e que ganhou boa leva de votos com esse discurso. As oligarquias que sempre alimentaram o patrimonialismo e usam, de forma execrável, recursos públicos, não fazem discurso altruísta, elaborado, sobre o povo e o futuro, e a “refundação do Brasil”. Foi isso que o PT fez, enquanto praticamente destruía a Petrobrás, entre outras obras de desmanche não-criativo. (E, pelo visto, a crônica policial trará mais sobre esse tema).

Ocorre que nunca estamos prontos para mais uma surpresa. O recém-denunciado esquema que envolve o Ministério do Planejamento, o próprio ministro e uma empresa de informática, além de outros escalões do Ministério, é algo inimaginável: o PT extraindo recursos de importante parcela da classe trabalhadora (funcionários públicos, inclusive professores; portanto, a mesma Academia em que se identifica numeroso contingente de pessoas que com desmesurado ardor defendem Lula e o que grupos do PT vêm fazendo). O caso agora envolve uma mecânica de muito fácil entendimento: o anzol é a taxa de administração de crédito consignado (os tais empréstimos vinculados à folha de pagamento, com risco zero para o credor: o devedor recebe o salário descontada a prestação pelo empréstimo recebido). A empresa de informática contratada pelo Ministério (de alguém próximo dos camaradas) adiciona à taxa de administração de R$ 0,30 (trinta centavos) a “margem” adicional de três vezes o valor-base: R$ 0,95 – formando o valor de R$ 1,25 cobrado por cada operação. Ademais, sabe-se que vários tomadores fazem mais de uma operação (conheço alguns), comprometendo porção expressiva da renda pessoal e domiciliar.

Veja-se que o estrato social de funcionários públicos é parte do imenso contingente populacional que respondeu aos apelos de Lula, para “bombar” o consumo, depois que aqui chegou (em 2009) o impacto da crise econômica iniciada nos Estados Unidos no segundo semestre de 2007 (crise hipotecária ou crise dos títulos sub-prime). Isso contribuiu para ampliar o grau de endividamento das famílias, o que naturalmente incluiu o recurso a empréstimo consignado. Não se sabia que, de 2005 a 2010, tal esquema de desvio já havia então gerado a soma de R$ 100 milhões, ferrenhamente disputada entre vários interessados, disputa administrada pelo ex-Tesoureiro do PT, João Vaccari Neto. Era o que faltava: não bastava a Petrobrás, símbolo de empresa brasileira, “do povo”. Um perfeito golpe em estrato da própria classe trabalhadora, no qual se encontram ferrenhos apoiadores dos governos petistas. Uma pancada que põe bem mais lenha na fogueira em que Lula lançou o PT.

Infelizmente, não há motivos para comemoração dos desdobramentos da Operação Lava-Jato, esse personagem institucional que veio para ficar pelo tempo que, assim espero, seja necessário. O que o lulismo promove vai muito além da corrupção. O barulho que agora se ouve, a destruição que se vê vai muito além da fumaça da corrupção. Trata-se do que chamo de corrosão institucional: cooptação de lideranças em escala pensada e ampliada, corrupção na governança, destruição de elos solidários na organização e nas representações da sociedade civil, desmoralização completa da política, achincalhamento do Congresso. A obra-símbolo é a destruição do PT, um partido de massas cuja permanência só faria bem à chamada “democracia burguesa” não muito prezada por setores do partido. Meu medo é de que o perigo desse mal maior – afinal, reconstruir instituições é sempre mais difícil do que criá-las e consolidá-las pela legitimação – não esteja sendo devidamente percebido por imensas parcelas da sociedade, no que incluo a Academia e outros segmentos da intelectualidade.

(*) Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco.