Em análise da poesia de João Cabral de Melo Neto, a pesquisadora Maria Isaura (UERJ), usando os poemas O Rio e Morte e Vida Severina, nos chama a atenção que na obra do autor “….o rio e o homem mal podem ser distinguidos. Sempre mirando-se, um sendo o eco do outro. Sente-se que o rio se identifica com o viver nordestino, ou mesmo que o rio e a vida são a mesma coisa.” Ela continua apontando que, nesta configuração do elemento fluvial como extensão do humano e vice-versa, a poesia de João Cabral projeta simbolicamente procedimentos de uma cultura regional que se movimenta à beira do precário e da sobrevivência.
Não é surpreendente assim que o rio São Francisco, principal fonte dos recursos hídricos da nossa região, com 80% de sua bacia dentro do semiárido, tenha um simbolismo acentuado e uma identidade quase humana para os nordestinos. É na sua bacia que se encontra a maior área irrigada do Nordeste, grande parte dentro de perímetros públicos, que são prevalentes (67% no Nordeste contra 6% no Brasil)). Ademais, através do projeto de transposição, além da ampliação desta área, pretende-se resolver problemas de balanço hídrico desfavorável de várias regiões do Nordeste, incluindo o Agreste Pernambucano. .
Um dos principais usuários de suas águas, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), construiu vários reservatórios com o propósito de produzir energia hidroelétrica e regularizar as suas vazões plurianualmente . A operação do maior deles, Sobradinho, é extremamente importante para a região mais seca da bacia , o Submédio Franciscano, com todos os seus usuários, que incluem os polos irrigados de Petrolina e Juazeiro e do Complexo de Itaparica, além de todas as demais usinas da CHESF ( Itaparica, Complexo de Paulo Afonso, Moxotó e Xingó).
Nestas últimas semanas muitos partiram em defesa do rio. Não se viu tamanho ardor diante das extremas dificuldades por que vem passando desde 2012, num processo frequentemente associado unicamente à seca que vivemos, mas também apontadas aquelas como resultantes de uma escassez de governança, tema-título da Reunião do Comitê da Bacia do São Francisco (CBHSF) realizada em Maceió já em novembro de 2014. Tampouco se ouviram tantas vozes diante da revitalização pactuada e não realizada, o que incluía saneamento de todas as cidades às suas margens, ou ainda diante da transposição quase acabada como obra de engenharia e ainda sem planos de operação. A defesa veio diante da sua suposta “venda” associada à privatização da Eletrobrás, que incluiu os ativos da CHESF, e que foi anunciada recentemente. As “frentes” formadas contra a privatização da Companhia usam o rio São Francisco e a gestão de suas águas como um dos principais argumentos, inviabilizador da primeira. A discussão perpassou aspectos ligados ao setor elétrico e os impactos econômicos resultantes e desembocou no rio, com apelos fáceis, jargões passionais e cantilenas completamente descoladas do nosso moderno arcabouço institucional de gestão de recursos hídricos.“ Querem vender o São Francisco”; “ Vender a CHESF é vender a água e a vida do nordestino.” “Privatizar a CHESF é dar a chave da caixa d´água do Nordeste para o empresário”, foram algumas das frases de impacto, que li nos últimos dias, desinformando mais do que informando a população. Independentemente da posição favorável ou contrária à privatização da Eletrobrás/ CHESF, urge que informemos corretamente à sociedade, para que a mesma possa se posicionar.
A edição da Lei n.9.433, que substituiu o Código de Águas do início do século, forneceu os instrumentos necessários à administração dos recursos hídricos brasileiros, no que se refere à proteção e melhoria dos aspectos de qualidade e quantidade. O fato da referida legislação só ter sido sancionada no início de 1997, permitiu que as especificidades regionais pudessem ser evidenciadas em uma série de leis que, elaboradas pelos Estados, buscavam solucionar seus próprios problemas. Desta forma, através das normas estaduais e da Lei federal n. 9.433, foram incorporados à ordem jurídica brasileira novos conceitos: como o da bacia hidrográfica considerada como unidade de planejamento e gestão; da água como bem econômico passível de ter a sua utilização cobrada; e a gestão das águas delegada a Comitês e Conselhos de recursos hídricos, com a participação, além da União e dos Estados, de Municípios, de usuários de recursos hídricos e da sociedade civil.
Tal dominialidade das águas, assim repartida entre a União e os Estados, requereu a criação de mecanismos de articulação, para viabilizar a gestão de forma mais efetiva e sem entraves. Foram criadas então instituições como o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e as Secretarias de Recursos Hídricos (Ministério do Meio Ambiente) e de Infraestrutura Hidráulica (Ministério da Integração) e finalmente a Agência Nacional de Águas (ANA) em 2000, para estimular e contribuir na viabilização de uma cultura tão desejada de gestão integrada dos recursos hídricos.
A nossa Agência Reguladora (ANA), criada através da lei 9984, atua em articulação com órgãos e entidades públicas e privadas integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulando o uso de recursos hídricos de competência federal, como é o caso do rio São Francisco, que ocupa territórios de 6 Estados e o DF. Seu papel é o de assegurar que todos os atores estejam fazendo o que lhes cabe para o efetivo funcionamento do sistema, de forma a respeitar o princípio dos usos múltiplos.
Este princípio foi instituído como um dos fundamentos da nossa Política Nacional de Recursos Hídricos, e os diferentes setores usuários passaram a ter igualdade de direito de acesso à água. A única exceção, já estabelecida na própria Lei, é que em situações de escassez a prioridade de uso da água no Brasil é o abastecimento público e a dessedentação de animais. No caso dos reservatórios de aproveitamento hidroelétrico, dado que a concessão da geração de energia a partir dos nossos recursos hídricos é uma atribuição da União e o nosso sistema elétrico é interligado, a definição das condições de operação e fiscalização ainda é atribuição da ANA, mas deverá ser feita de forma articulada com o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS.
Por isso, dentro do nosso arcabouço institucional, regras de operação dos reservatórios, incluindo aqueles com aproveitamento hidroelétrico, tem limites mínimos e máximos que seus níveis e/ou vazões podem atingir, tanto para jusante como para montante, decididos não pelo concessionário, seja ele público ou privado, mas atendendo ao princípio dos múltiplos usos. Apenas desconhecimento da nossa legislação de recursos hídricos pode justificar afirmações de que a CHESF é a responsável pela gestão das águas da bacia do São Francisco.
A situação de escassez que vivemos hoje ilustra bem algumas características desta lei. Os Estados do Nordeste brasileiro vivem há 6 anos o que já é considerado a pior seca dos últimos cem anos. Sobradinho atingiu 7,8% do seu volume útil em agosto deste ano e deve atingir o volume morto em novembro, segundo previsão do atual diretor de operações da CHESF, nível nunca atingido desde sua construção em 1970. O reservatório pode acumular quase 70% da água a ser usada na geração de energia, mas há um valor mínimo requerido por resolução da ANA de 1,3 mil metros cúbicos por segundo que deve ser liberado para assegurar os usos múltiplos. Diante da maior crise hídrica vivenciada pela nossa geração, reduções do valor da liberação mínima desta nossa caixa d´água têm sido pactuadas entre os diversos agentes-gestores – e não decididas pela CHESF – em reuniões semanais lideradas pela Agência Reguladora .
A sala de situação (http://www2.ana.gov.br/Paginas/servicos/saladesituacao/v2/default.aspx) , que se constitui num centro de gestão de situações críticas e subsidia a tomada de decisões da Diretoria da Agência, é que vem promovendo semanalmente essa avaliação conjunta das condições de operação futuras dos reservatórios da bacia do São Francisco, envolvendo todos os usuários. As gravações dessas reuniões sem edições vêm sendo disponibilizadas desde maio de 2017 no canal da Agência (https://www.youtube.com/user/anagovbr), o que permite o acesso e o conhecimento de toda a sociedade das decisões pactuadas.
Mesmo sem negar que há grandes desafios a serem solucionados, e muito há a ser aperfeiçoado na gestão dos recursos hídricos nacionais e em nossas jovens instituições gestoras de águas, não se pode deixar de reconhecer a evolução deste arcabouço. É fato que há muito, principalmente devido a uma modernização das nossas leis e o amadurecimento dessas instituições, deixamos para trás um tempo em que cada usuário, seja público ou privado, visualizava funções e usos para a água de acordo com os seus interesses e necessidades próprias, sem possibilidades de uma real participação nas decisões quanto ao uso coletivo de toda a sociedade.
Maria Isaura concluiu que, nos poemas cabralinos, a ideia frisada é de que a vida, especialmente a nordestina, identifica-se com a natureza do rio, pois é viagem, que coincide com a procura de melhores paragens. O velho Chico procura o Novo. Nós, seres do cenário nordestino, sabemos que essa busca implica em difíceis andanças, luta constante e o defrontar com duras realidades. Como os Severinos do João Cabral, só nos resta extrair da nossa condição de carência, a coragem necessária para prosseguir.
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