Trump e Hitler ao fundo

Trump e Hitler ao fundo

Devemos à filósofa e cientista política Hannah Arendt o conceito da banalização do mal. Após assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, Hannah escreveu o livro Eichmann em Jerusalém, demonstrando que o mal, quando atinge grupos sociais e o próprio Estado, como aconteceu na Alemanha nazista, não é uma categoria ontológica, metafísica ou um produto da natureza.

É um ato político e histórico, resultado de decisões políticas e ações humanas que se manifestam na esfera institucional. A partir da análise da personalidade de Eichmann – criminoso de guerra sequestrado na Argentina pelo Mossad israelense e condenado à pena de morte –, Hannah Arendt concluiu que o mal é praticado por homens comuns e, por eles, banalizado.

De fato, Eichmann não apresentava traços de um antissemita fanático nem de um doente mental. Era um burocrata do regime nazista. Em sua defesa, alegou apenas ter cumprido ordens superiores para subir na hierarquia nazista, tornando-se executor da “Solução Final” de Hitler para o “problema judaico” – o extermínio dos judeus, uma verdadeira limpeza étnica.

O filme A Conferência, disponível na Netflix, ilustra bem as conclusões de Hannah Arendt. A trama gira em torno de uma reunião de 15 líderes do Partido Nazista e da burocracia hitlerista, realizada em 20 de janeiro de 1942, na paradisíaca Vila Great Wannsee, no sudoeste de Berlim.

A conferência foi coordenada por Reinhard Heydrich, chefe do Gabinete de Segurança do Reich, ao qual estavam subordinadas a temida Gestapo e a tropa de segurança hitlerista, a SD. A reunião ocorreu ao redor de uma grande mesa de jantar, onde, ao término, seria servido um lauto café da manhã.

De terno e gravata, os participantes se comportavam como altos executivos de uma empresa, discutindo medidas para otimizar a linha de produção e aumentar a produtividade de seus “funcionários”. A única diferença é que estavam debatendo o método mais eficaz para exterminar os judeus e o que fazer com seus corpos. Diversos métodos já haviam sido testados e abandonados, seja por serem antieconômicos, seja por serem ineficazes.

De fato, não era nada fácil assassinar milhões de judeus e fazer desaparecer seus corpos. A “solução final” seriam as câmaras de gás e a cremação dos corpos em altos fornos nos campos de concentração.

Eichmann foi escolhido como o executor da Solução Final, com a mesma naturalidade com que se escolhe um alto executivo para uma empresa. Já Reinhard Heydrich, a quem Hitler dizia ter um “coração de ferro”, foi assassinado em 27 de maio de 1942 pela resistência tcheca treinada na Inglaterra. Mas essa é outra história.

Vamos ao que interessa: a “solução final” de Donald Trump para o problema palestino. O ex-presidente dos Estados Unidos banaliza o mal ao propor – como se fosse a coisa mais natural do mundo e dotada da maior racionalidade – que os dois milhões de palestinos sejam expulsos da Faixa de Gaza e transferidos para “campos de refugiados” na Jordânia e no Egito.

Gaza passaria a ser uma “colônia americana”, administrada diretamente pelos Estados Unidos, e Trump promete transformá-la na “Riviera do Oriente Médio”. Por enquanto, os palestinos estão livres de serem enviados para câmaras de gás, mas sua diáspora não deixará de ser tão cruel quanto a dos judeus.

Os grupos e países radicais e fundamentalistas do mundo árabe sempre sonharam em “jogar Israel ao mar”, criando uma Palestina que se estenderia do rio Jordão ao mar, incluindo Gaza, Cisjordânia e Israel. Donald Trump, por sua vez, quer um Israel que vá do mar ao rio Jordão, com a Cisjordânia e Gaza deixando de pertencer aos palestinos.

Essa proposta é música para os ouvidos de Netanyahu e da ultradireita ortodoxa israelense. A embaixadora americana na ONU, Elise Stefanik, já declarou que Israel “tem direito bíblico sobre a Cisjordânia”. Esse é o mesmo argumento usado por colonos fundamentalistas israelenses para expulsar palestinos da região. Desde o primeiro governo de Netanyahu, na década de 1990, assentamentos ilegais avançam na Cisjordânia.

Os planos do ex-presidente americano violam descaradamente a resolução da ONU que estabelece a coexistência de dois Estados na região: um palestino e outro israelense. Não há a menor possibilidade de os palestinos aceitarem pacificamente sua expulsão de Gaza, assim como os países árabes, mesmo os mais moderados e aliados dos Estados Unidos. Tampouco Egito e Jordânia serão cúmplices da diáspora palestina imposta por Trump.

Recorrendo novamente a Hannah Arendt para entender a banalização do mal promovida por Trump, vemos que sua teoria se aplica aos tempos atuais:

“O mal que Eichmann praticava não era um mal demoníaco, mas um mal constante que fazia parte da rotina dos oficiais nazistas como instrumento de trabalho. Ou seja, a banalidade do mal é um mal que se tornou comum de ser praticado.”

Donald Trump vem praticando o mal em cadeia, quase de forma cotidiana e trivial. É um erro considerar a banalização do mal praticada pelo homem mais poderoso do mundo apenas como um produto de sua mente doentia. É muito mais do que isso: trata-se do projeto de uma Nova Ordem Mundial, alicerçada no totalitarismo e no autoritarismo. O último que tentou construir uma ordem mundial com tais características foi Hitler. Ele fracassou porque seus planos enfrentaram uma ampla resistência internacional, da mesma forma que agora os projetos de Trump vêm sendo repudiados pela comunidade internacional e pela opinião pública mundial.

Na “Riviera do Oriente Médio”, as pessoas viveriam como a família do comandante do campo de concentração de Auschwitz, retratada no filme Zona de Interesse. Eles levavam uma vida comum e tranquila em uma casa bucólica, com um amplo jardim, separados do maior campo de extermínio por um muro. Mas Auschwitz estava ali. Era impossível isolar o paraíso do comandante nazista dos gritos abafados dos judeus que marchavam para a câmara de gás, do cheiro pútrido dos cadáveres incinerados e da fumaça das chaminés dos fornos de cremação.

Da mesma maneira, transformar Gaza em um balneário paradisíaco – certamente reconstruído pelas empresas milionárias da família Trump – não abafará o grito de dois milhões de palestinos expulsos, que perderam sua terra, sua identidade e seu lar.