Cena de Game of Thrones

Cena de Game of Thrones

João Rego (*)

 

Escrevi há algumas semanas um artigo[1] tentando explicar o comportamento de algumas pessoas que, alinhadas com os governos do PT, sustentam-se nele como se fosse a última possibilidade de revanche sobre o passado de ditadura militar — quando a repressão envolveu com o pesado manto da tortura várias gerações. Falei sobre a dificuldade de quem sustenta sua existência em uma ideologia fechada e cheia de certezas. Tantas certezas que tudo que vem de encontro a elas deve ser sumariamente tachado como golpista, elitista e distanciado do povo e de seu sofrimento estrutural.

Não importa se a realidade social e política – aquela mesma que o marxismo investigou e tocou fogo na veia de muitos, no mundo inteiro, para transformá-la – tem sido uma adversária implacável de suas crenças. O importante é continuar negando, mesmo com a má intenção de confundir os menos esclarecidos, jogando a dúvida de que esta crise é uma invenção da “mídia golpista”. Outros, até bem-intencionados, capturados por um delírio, único recurso que lhe resta para não os projetar no vazio da angústia, nele se seguram desesperadamente na vã esperança de que tudo aquilo em que investiu na sua existência de militante, ou nas suas crenças de cidadão, ainda resista. Mas é inútil. A cada investigação; a cada ato como o do TCU recentemente; a cada fase da operação lava-jato; ou cada fio que se puxa da riqueza, indevidamente acumulada, de Lula e sua família; esta “realidade” vai sendo triturada pelas forças inexoráveis das instituições democráticas. Sim, isto tudo é democracia — em pleno funcionamento. Aquela mesma para a qual muitos tombaram ou sacrificaram grande parte de suas vidas aprisionados ou no exílio durante os anos de chumbo.

É possível identificar este tipo de comportamento – as certezas ideológicas que cegam – em todos espectro partidário, inclusive nos do outro lado. Isolo o caso do PT porque é o governo que está com a responsabilidade (ou culpa?) da crise que vem há meses afetando o nosso cotidiano, objeto desta breve reflexão.

A essência da crise está, como bem definiu Gramsci, no fato de que o velho ainda não morreu e o novo ainda não chegou em sua plenitude. O velho aqui é uma cultura de dominação política calcada no patrimonialismo do Estado e no fisiologismo em detrimento da população que dá duro e alimenta esta máquina voraz com parte do suor do seu trabalho. Vejo o velho em todas as instâncias da sociedade: no empresário que vive para tirar vantagem das mamatas do Estado, sem querer correr o natural risco de mercado; no intelectual, que, coitado, capturado pelos seus mais nobres ideais de juventude, está ad infinitum impossibilitado de rever seus valores e teorias políticas para dar conta desta complexa e desafiante fase do capitalismo informacional; nos juristas da mais alta corte da nação que se agarram aos pomposos e inebriantes aspectos do poder – alguns deles, acreditem, se vêm e se acham sábios supremos; nos políticos … Ah! Nestes vocês também vêm.

Na outra vertente, vejo o novo consolidando a prática real da democracia – sim, democracia não é um conceito ou algo idealizado, pronto e acabado. Democracia é a práxis política em estado vivo espraiando seu efeito transformador na sociedade e em nossas vidas. Todos nós somos sujeitos e objetos desta transformação. Vejo uma nova geração de juízes fazendo história (A benção Sérgio Moro!); vejo uma enorme onda de jovens empreendedores construindo, com competitividade global, as forças inovadoras da economia nacional; vejo o intelectual que se recicla numa tentativa necessária de sair do estado de orfandade em que a esquerda ficou após a queda do muro de Berlim — ciente de que o capitalismo não pode ficar com a corda solta, sem alternativas que o regulem.

Enfim, essa “crise” que vem nos aporrinhado numa onda broxante em nosso cotidiano, causando o desemprego de milhares de pessoas, pode ser vista por esta clivagem: o velho vivendo seus estertores – agonia mortal dos moribundos – e o novo o golpeando com a espada afiada das instituições democráticas, moldando nossa democracia.

Quanto tempo vai levar? Não sei, vai depender da complexa luta entre o novo e o velho e da capacidade do país em suportar este desvario governamental. Isso é irreversível? A democracia tem duas características que a constituem: a imprevisibilidade, que é sempre testada a cada eleição, e a reversibilidade. Podemos consolidá-la estruturalmente— e vimos numa pisada boa neste sentido — mas nada nos garante que esta estrutura não sofra modificações.

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(*) João Rego é engenheiro, cientista político e consultor.

[1] A dessacralização da política – Revista Será? Edição 12 de agosto de 2015.

https://revistasera.info/a-dessacralizacao-da-politica-joao-rego/