Foi Isaiah Berlin que, em maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, chamou atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de populismo. Mobilizando os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro, verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em punho, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que sua ocorrência se tivesse dado em um único lugar, não importando sua vigência no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar desse imenso déficit analítico, o populismo continuou a ser, nas ciências sociais ou na linguagem política, uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio de estratégias variadas de ação política.
A pré-história do conceito registra que o neologismo nasceu da tradução para o inglês do movimento narodnik na Rússia da segunda metade do século XIX. No mesmo período, ele também seria utilizado, em menor escala, para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no hinterland norte-americano. Depois da Rússia, a América Latina é a “grande pátria do populismo”, escreveu José Aricó. Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser a denominação de um período da sua história.
Como conceito, o populismo resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democrática que derivavam da inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido tal identidade.
O populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas, na América Latina e no mundo. Enquanto governos ou regimes, o populismo orientou sua política para a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”, incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O populismo promoveu a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente. Se aprofundarmos essa leitura, a “era do populismo” poderia ser compreendida por meio da categoria gramsciana da “revolução passiva”, abrindo novas perspectivas de interpretação.
Seja como for, o populismo interditou a via de passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas implicações: mais do que um conceito, o populismo era, no fundo, uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva, fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um passivo insuperável.
A história tratou de questionar essa interpretação. A luta política contra os regimes autoritários, especialmente no Brasil, deslocou o populismo do centro da política latino-americana, recusou a centralidade do Estado e promoveu a autonomia da sociedade civil em sua dinâmica de expansão da cidadania. No plano mundial, a globalização alterou a relação entre política e mercados. Tudo isso parecia enterrar definitivamente o populismo como um constructo ideológico passível de ser mobilizável apenas na “era dos Estados Nacionais”, mas anacrônico no contexto de globalização. Nessas circunstâncias, a política democrática começava a agregar novos valores à “revolução passiva”, agora em registro positivo, invertendo os vetores de sua orientação, com a mudança dirigindo a conservação.
A trajetória do populismo no século XX foi, em certo sentido, democratizadora, ainda que, em geral, avessa ao constitucionalismo e ao liberalismo. Contudo, a partir do início do século XXI, a mesma conjuntura que viu o avanço das amplas liberdades, do pluralismo e da alternância de poder nas democracias latino-americanas recém-saídas do autoritarismo também produziu uma espécie de “revanche do populismo” que, hoje, se expressa na moldura do bolivarianismo. Nela se supõe a emergência de uma forma de política na qual a relação entre governantes e governados abriria passagem para a construção de uma democracia direta e participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e ineficiente. O populismo do século XXI busca uma identidade integral entre a instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em termos.
Para Laclau, a razão populista e a razão política são idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas democracias ocidentais. Essa radicalização contraposta à modernidade, avessa ao individuo e sua expressão autônoma, que dá sustentação ao populismo do século XXI, sintetizada por Félix Patzi, ex-ministro da educação da Bolívia, como “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”.
Laclau realiza uma simbiose entre a teoria do populismo e as expectativas decantadas pelo marxismo quanto a uma revolução promotora da unificação, como dissemos acima, entre a razão do povo e a razão política. Por isso, faz sentido ele afirmar que hoje “há um fantasma que assombra a América Latina: esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx é imediatamente reconhecível e pode-se deduzir que Laclau pensa em reservar ao “populismo atual” um lugar idêntico ou semelhante ao que Marx imaginava para o comunismo na Europa dos idos de 1848.
Mas, ao contrário de Laclau, pelo menos até agora, o que se pode anotar é que o populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Hoje, no interior da moldura do bolivarianismo, nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta os direitos humanos, suprime as liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas. Onde a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência é maior.
Alberto Aggio é historiador e professor titular da UNESP
Muito bom e sugestivo o artigo. No entanto, é preciso ficar claro que o populismo só se manteve na América Latina porque se mesclou e ganhou musculatura com os conceitos e os apoiadores do marxismo, em suas diversas matizes. Um exemplo patético é o Peronismo que começou como uma ideologia para fascista e, hoje, seus governos, são vistos,como um dos símbolos da esquerda no continente,embora não apresente nenhum conceito e. muito menos, nenhuma prática política que justifique qualquer projeto socialmente transformador.
América Latina é pátria maior do populismo e também da hiperinflação. E isso não é mera coincidência. Fora países da América Latina, somente Israel e Viet Nam registraram inflação nos 1980s que rondou 500% (sim, quinhentos ou mais). Mas estes por período curto, e por motivos específicos diferentes de políticas populistas. Na América Latina o populismo sempre se caracterizou por ignorar restrições orçamentárias. Entre economistas o termo populismo tornou-se conhecido e passou a ser usado depois que Rudiger Dornbusch o usou, ao analisar a economia de um país latinoamericano. Acho que foi o Peru no primeiro governo de Garcia, mas não lembro exatamente.
Para economistas, a referência essencial ao falar de populismo é
Rudiger Dornbusch and Sebastian Edwards, “Macroeconomic Populism”, Journal of Development Economics 32 (1990) pp. 247-277 Como se caracteriza? Traduzo:”Populismo macroeconômico é uma perspectiva política de administração da economia que dá ênfase ao crescimento e à redistribuição de renda, e retira ênfase ao risco de inflação e de financiamento do déFicit público e à reação dos agentes econômicos a políticas agressivas que não levam em conta os mercados.”
Eis aí porque, como disse acima, a América Latina é pátria maior do populismo E DA INFLAÇÃO. Verifiquei que o artigo citado analisa o Peru sob Garcia e o Chile sob Allende. Mas a relação entre populismo e inflação abrange muito mais países.
E perdura até hoje.
Agradeço aqui aos três comentários feitos ao artigo. Contudo, observo que minha perspectiva de análise vai além da visão dos economistas. Não por serem economistas, obviamente, mas por estabelecerem modelos que visam serem aplicados, independentemente das situações históricas específicas. Assim, não creio, por exemplo, ser correta a qualificação de populista ao governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. O artigo busca indicar também o fato de que o populismo existe muito mais como uma teoria explicativa domque propriamente como um conceito válido para o desvendamento do andamentos e das contradições políticas na América Latina da segurança metade do século XX, principalmente.
Agradeço aqui aos três comentários feitos ao artigo. Contudo, observo que minha perspectiva de análise vai além da visão dos economistas. Não por serem economistas, obviamente, mas por estabelecerem modelos que visam serem aplicados, independentemente das situações históricas específicas. Assim, não creio, por exemplo, ser correta a qualificação de populista ao governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. O artigo busca indicar também o fato de que o populismo existe muito mais como uma teoria explicativa do que propriamente como um conceito válido para o desvendamento do andamento e das contradições políticas na América Latina da segurança metade do século XX, principalmente.