RESUMO
A recente decisão tomada pela Comissão da Verdade de não investigar os crimes praticados pela esquerda armada durante a ditadura militar reacende velhos debates que há mais de trinta anos pairam como uma alma penada sobre a vida política do país. Trata-se de uma história que nunca acaba porque os militares recusam-se até hoje a encarar a dura responsabilidade que carregam no seu capítulo mais sombrio: os crimes cometidos pelos torturadores e o destino dos desaparecidos. O ensaio discute essa questão. Mas, pondo-se na contramão de certo senso comum crítico em relação ao regime, rejeita a versão de uma história inteiramente maniqueísta opondo bandidos fascistas de um lado e mocinhos democratas do outro, lembrando algo que a nossa boa consciência solidária com os perdedores da “guerra suja” prefere esquecer: a responsabilidade, no desencadeamento dessa “guerra”, dos que pegaram em armas não para construir uma democracia como a que temos hoje, mas para fazer a revolução que nos levaria ao socialismo. Passados mais de 25 anos da entrega do poder aos civis, é mais do que tempo de tratarmos a ditadura militar como um objeto irremovível da nossa história, o que está a exigir uma atitude mais objetiva e serena, e menos militante, dos que se dispõem a pensá-la – defende o ensaio.
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Luciano Oliveira
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Luciano, seu artigo levanta muitas questões importantes, para mim a mais relevante é a visão mais ampla das ações de um e outro lado, além do bem e do mal, apenas. No entanto, tentando imaginar a leitura de jovens da idade dos meus filhos, entre 30-35 anos, há algumas afirmações que gostaria de discutir, o que creio ser o propósito deste novo espaço. Não vi nenhuma palavra neste artigo que passasse a um jovem que não viveu e/ou não estudou este período da nossa história, a mínima noção da absurda desigualdade de condições de poder em que esses atos – de um lado, da ditadura militar, de outro, das ações armadas – ocorreram no país. Os grupos que aderiram a estas pagaram bem caro seu erro histórico e, claro, poucos viram “a vitória simbólica dos vencidos”. Pareceu-me esquisito ler “não se pode afirmar que eles permaneceram completamente impunes” seguido da palavra punição entre aspas e adjetivada como soft. Cada um tem sua visão, claro, mas, dito assim, as palmadinhas – os citados isolamento, preterimento e condenação moral – dadas aos torturadores estão sendo de todo modo consideradas punições de verdade. Parece até que, por não poder narrar seus feitos de cabeça erguida, os torturadores já foram sobejamente punidos.
Concordo plenamente com sua posição em relação à negociação sob a ética da responsabilidade e não sob a da convicção, o que provavelmente teria inviabilizado o processo de transição; entretanto, não importa se os mortos e torturados no Brasil foram em menor número que na Argentina e Chile; convenhamos – esqueça a vertente de se ter pena das famílias – essa métrica se encaixa perfeitamente nos apenas “mais ou menos contra” a ditadura, já que a mesma, segundo alguns, não foi tão malvada como as outras. Creio também que um jovem precisa ouvir que, na construção do futuro, o passado não pode deixar de existir; lembrá-lo não é remoê-lo, a não ser claro, para quem não quer ser ferido sequer moralmente no presente. É evidente que toda punição jurídica que porventura houvesse atingiria torturadores hoje velhinhos; o simbolismo dessa punição, porém, não teria o mesmo significado do consolo que as famílias terão ao localizar- se isto ocorrer – os corpos dos seus mortos: demonstraria que na democracia em que vivemos atualmente, não prezamos somente o dever de compaixão mas também o da responsabilização. Quem sabe se essa postura não coibiria tantas ações espúrias, mesmo as de outra natureza?
Prezada Maria de Fátima,
Li com muita atenção e respeito seu comentário crítico ao meu artigo. Muito bem escrito e muito bem ponderado. Eu também, pensando pessoalmente, gostaria, e como!, de ver esses torturadores condenados pela justiça penal. Como isso está fora de cogitação depois da declaração de constitucionalidade da Lei de Anistia pelo STF, tenho explorado outras vertentes dessa história triste e que deixou marcas, se não físicas, pelo menos na alma de todos nós que vivemos aqueles anos. Pessoalmente nunca fui torturado, mas tive amigos próximos que foram. Isso foi um choque tão grande para mim, que, como professor e pesquisador, nunca deixei de pensar no assunto. Observo ainda que se eles estão a salvo da justiça penal, não estão a salvo de outras jurisdições. Há ações declaratórias e mesmo indenizatórias em curso no país, algumas com condenação. (Se não me engano, é o caso de Brilhante Ustra.) De toda forma, continuo achando que a Comissão da Verdade, para não perder o foco, deve se concentrar na questão dos mortos e desaparecidos, além de, óbvio, mapear em detalhes os locais (e seus responsáveis) onde esses horrores se deram. Isso, vindo de uma Comissão criada pelo legislativo brasileiro, desautorizará doravante que generais de pijama venham defender o insistentável, afirmando que o formidável aparato de repressão e seus centros de tortura não foram uma política de estado. Enfim, o ideal seria que as Forças Armadas viessem finalmente fazer um “mea culpa”. Mas num país como o nosso talvez seja aspirar demais. Tenho outros escritos sobre as particularidades da nossa ditadura frente à chilena e argentina. Se quiser manter um contado por fora desses pequenos quadros de comentários, me escreva: [email protected].
Finalmente, acho que sua contribuição é valiosa para manter o debate que os nossos filhos, concordo inteiramente, devem conhecer.
Abração Cordial,
Luciano Oliveira
Luciano, obrigada pela atenção de me responder. Essa pequena conversa mostra que há ainda muitas facetas a explorar. Sabemos todos que se até discutir ainda é difícil, que dirá o esmiuçamento dessas questões, evidentemente muito além da abrangência de um artigo ou comentário. No entanto, louvo quem, em tendo espaços públicos de expressão, deles se aproveite não só para informar mas para ajudar a ampliar a visão crítica de período tão doloroso da nossa história pois o trabalho da Comissão da Verdade apenas começou. Guardei seu mail e, para o momento, passei o link da revista e do seu artigo para algumas pessoas. Vamos aguardar se elas opinam também. Embora talvez não tão fielmente quanto a revista mereça, vou acompanhá-la, sem dúvida.