Sérgio C. Buarque >

Paixão e cegueira ideológicas dificultam qualquer discussão séria e construtiva sobre as políticas sociais do Brasil, principalmente quando se trata de iniciativas emergenciais e de assistência aos pobres. Qualquer critica ou dúvidas em relação ao programa Bolsa Família, cartão de visita do governo, tende a provocar uma comoção, e o seu autor costuma ser visto como socialmente insensível, elitista e reacionário. E, no entanto, nada mais tradicional e antigo, para não dizer paternalista, que a distribuição de dinheiro com os pobres para completar um pouco a sua escassa renda. Nada contra a transferência de renda para redução imediata do sofrimento dos pobres e seu miserável orçamento familiar. Entretanto, a divulgação do programa Bolsa Família como um instrumento de enfrentamento da pobreza é uma propaganda enganosa, uma falsificação que dificulta, esconde os fundamentos da pobreza e adia a busca por verdadeiras iniciativas para enfrentamento das causas estruturais da pobreza.

Decididamente o programa Bolsa Família não é um instrumento de combate da pobreza. A transferência de renda conserva a pobreza na medida em que apenas dá um pequeno alívio imediato ao padecimento das famílias. Como não muda a essência da condição social dos pobres – sua carência de capacidade para gerar a própria renda – a pobreza continua dependente do programa para que os pobres continuem apenas um pouco menos miseráveis. Por isso, mesmo quem o defenda deve admitir que o programa é um mecanismo assistencialista sem impacto nas estruturas da economia e da sociedade brasileiras que geram desigualdades e pobreza.

A reflexão deve começar fugindo da armadilha conceitual que restringe a pobreza ao baixo nível de renda. Embora seja uma das formas de medição, a pobreza é um fenômeno muito mais amplo e complexo. A pobreza se manifesta, principalmente, na dramática carência dos serviços sociais básicos – especialmente educação e saneamento – que o governo continua ignorando nas suas políticas públicas, porque é caro, matura lentamente e não é visível pelo povo, portanto, não gera efeitos eleitorais. Se cerca de 25% das famílias têm renda baixa, 32,9% dos domicílios brasileiros não têm saneamento (esgoto ou fossa) e 17,2% não tem abastecimento de água, de modo que as 13 milhões de famílias que recebem o benefício (Bolsa Família) continuam vivendo sobre a podridão do esgoto a céu aberto nas favelas urbanas e nos povoados miseráveis do meio rural, e devem levar os filhos para escola de péssima qualidade. A pobreza se apresenta também na degradante ambiência social das favelas onde vivem mais de 11,4 milhões de brasileiros sem serviços sociais, alta ociosidade dos jovens e ausência do Estado. Estudo IPEA mostra que a população de jovens (de 15 a 29 anos) que nem trabalha nem estuda, cresceu de 8,12 milhões, no ano 2000, para 8,83 milhões, em 2010, o que representa 17,2% de jovens ociosos e, portanto, vulneráveis e sem futuro.

A obrigatoriedade de frequência à escola dos filhos dos beneficiários do programa criaria a base para as transformações sociais, como defende o governo. Será? Qual escola? De que estamos falando? As escolas públicas brasileiras são muito ruins e na sua esmagadora maioria não preparam as crianças e os jovens com educação mínima, proficiência elementar em português e matemática. A nota média do IDEB do ensino público fundamental (anos iniciais) no Brasil é 4,7 (numa escala de zero a dez), sendo de apenas 3,9 para os anos finais (5ª à 8ª séries). Se esta é a média nacional, imaginem a qualidade e o desempenho das escolas em que vivem os beneficiários do programa? Apenas para dar uma ideia, a nota do ensino público na Bahia, Estado com maior número de bolsista, foi 3,9 nos anos iniciais e 3,1 nos anos finais (2011). Podemos arriscar que nas áreas remotas do próprio Estado da Bahia, em que estão os beneficiários do Programa, esta nota caia para níveis desesperadores. Sem escola de qualidade para os filhos dos beneficiários, a condicionalidade do programa – frequência à escola – vira uma farsa e o “Bolsa Família” continuará sendo um programa assistencialista que não transforma e não enfrenta a pobreza.

A condicionalidade nos remete a outra questão: por que os pobres não mandam os filhos voluntariamente para a escola, o fazem isso apenas quando são “pagos” pelo programa? Escola não é obrigação, é direito. Escola pública de qualidade para os filhos é um direito de todos, particularmente dos pobres. A frequência passa a ser uma obrigação, vendida pelos pobres para ganhar uma bolsa, muito provavelmente porque as escolas públicas disponíveis são um lixo e não oferecem mínimas condições de aprendizado e de melhoria social. E o que estão fazendo os governos, particularmente a União para reverter esta situação? Quase nada.

Nos últimos dez anos, os gastos com assistência social no Brasil aumentaram continuamente a sua participação no total do gasto social em detrimento dos investimentos em outras áreas de grande impacto transformador, como educação e saneamento. Em 2002, a União destinava 34,6% das despesas sociais para educação e apenas 7,1% para assistência social; em 2010, a participação da educação caiu para 23,9% enquanto os gastos com a assistência social subiram para 18,8% do total dos gastos sociais (sem contar Previdência Social). Em 2010, a União gastou R$ 49,5 bilhões em educação e cultura e R$ 39,1 bilhões em assistência social. É verdade que os principais gastos com educação fundamental são estaduais e municipais, mas os dados permitem mostrar como a União vem invertendo as prioridades, trocando as ações estruturadoras de mudança pelas urgências.

O governo e os defensores do “Bolsa Família” comentam, por outro lado, que os benefícios do programa estão criando um dinamismo da economia local pelo aumento do poder de compra dos pobres. Certo. Mas esta “dinâmica” não tem nenhuma sustentabilidade e se acabaria no segundo seguinte em que, por alguma razão, fosse suspensa a transferência de renda, na medida em que o mecanismo não altera as estruturas da economia local. Ao contrário da simples injeção de dinheiro da assistência, os investimentos em saneamento e, principalmente, em educação, geram muito emprego na implantação e no funcionamento das mesmas (com renda adicional vinculado ao trabalho), melhoram a qualidade de vida efetiva e, mais importante ainda, são ativos sociais que permanecem e que promovem mudanças na realidade social e econômica, preparando um futuro diferente para as novas gerações.

Para que a transferência de renda do “Bolsa Família” não seja um programa assistencialista é necessário que seja complementada com investimento de grande escala nas escolas frequentadas pelos beneficiários do programa com novo modelo gerencial. Para cada real entregue às famílias, o governo teria que aplicar dois para reestruturar as escolas frequentadas pelos seus filhos que, numa conta aproximada, correspondem a cerca de 26 milhões de crianças e jovens (supondo dois por família). Seria um gasto adicional de R$ 48 bilhões focando nas escolas dos beneficiários.

O que vemos, infelizmente, são os governos (principalmente o governo federal) andando na direção contrária e buscando resultados fáceis e rápidos, mesmo que frágeis e insustentáveis e que não balançam as estruturas econômicas e sociais. O Brasil segue, assim, de costas para o futuro com o olhar perdido no passado e nas emergências.