Reflexões sobre sociedade, internet e as manifestações sociais de julho de 2013.

João Rego 

Para Marília que acabou de nascer.

 ROMANIA. 1994. The Danube delta region. Location shooting of the film 'Ulysse's Gaze', directed by Theo ANGELOPOULOS - Josef Koudelka

ROMANIA. 1994. The Danube delta region. Location shooting of the film ‘Ulysse’s Gaze’, directed by Theo ANGELOPOULOS – Josef Koudelka

Tenho em minhas mãos a Revista Civilização Brasileira No. 16 de Novembro de 1967. Em sua a capa a foto de uma manifestação política, onde um jovem com óculos de intelectual carrega um cartaz que diz: NÃO SAIREMOS ENQUANTO NÃO FOREM LIBERTADOS ESTUDANTES E PADRES PRESOS! O conteúdo da revista, denso e instigante, tem artigos sobre marxismo, arte, desenvolvimento e pobreza, literatura, sindicalismo, inflação e ainda uma carta de Louis Altusser aos leitores brasileiros.

Eu tinha apenas dezessete anos quando esta revista chegou às minhas mãos e, por mais que eu tentasse ler e entender os artigos, ficava sempre barrado pela impossibilidade da sua compreensão plena. Faltavam-me leituras anteriores – ainda não tinha vivido o suficiente para isso-, principalmente sobre o pensamento marxista e suas correntes, que representavam o principal veio ideológico daquelas décadas. Esse não saber, entretanto, aguçava em mim uma enorme curiosidade, por perceber que aqueles artigos eram fonte de extrema ameaça para o poder político da época. Vivíamos em plena ditadura militar onde a  intelligentsia e seus portadores (os intelectuais), deveriam ser calados para que o manto autoritário do Estado nos envolvesse impedindo o pleno exercício da cidadania.

Ler era, por si só, um solitário ato de resistência. Participar ativamente de qualquer movimento político era um ato de bravura onde se colocava a própria vida em risco – e muitos tombaram ou penaram os anos da sua juventude presos – diante do aparelho repressor que, em 1968, com o AI-5, botou suas garras de fora.

Imaginem a vida de uma geração inteira recalcada, reprimida pelo autoritarismo de Estado que atuou por décadas em toda a América Latina, sufocando a criatividade e a livre expressão de pensamento. A resposta, ou reação, era resistir. E o principal combustível, além da revolta instintiva, era o marxismo a suas ideologias revolucionárias. Não havia outra opção se você fazia parte desse setor da sociedade inquieto e inconformado com a realidade. Quanto mais se lia, quanto mais se refletia e mais a inquietação crescia.

A Revolução Russa (1917), o Estado Soviético, a Revolução Cubana (1959) e a Revolução Comunista na China (1949) eram horizontes balizadores que inspiravam a grande maioria dessa geração de militantes políticos a acreditarem que suas estratégias e ações tinham um sentido libertário e uma determinação histórica. A intelectualidade estava aprisionada pelas forças da história forçando-as a caminhar por um estreito e único corredor de pensamento manietado pela dicotomia do bem e do mal: esquerda bem, direita mal. Foram necessários sete décadas de  “experiência socialista”, guerra fria e milhares de mortes para compreendermos, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, que a realidade entre Estado e Sociedade era muito mais complexa do que esse simples corredor da história por onde fluiu grande parte do século XX.

Paralelemente, e por causa disso, a atividade produtiva – o modo de produção capitalista – avançava célere com suas forças inovadoras construindo, destruindo e reconstruindo mercados e desejos de consumo nesse eterno e incessante ciclo schumpeteriano. O combustível ou a instância subjacente da produção, como cantara a pedra Adam Smith, David Ricardo e mais tarde Marx com a mais-valia, era a de força de trabalho do homem.

Com o fim da experiência da União Soviética, simbolizada com a queda do muro de Berlim, a esquerda se liberta dessa atroz dicotomia histórico-ideológica e entra numa explosão de correntes de pensamentos sempre instigada por esse não-saber, agora atravessada por uma orfandade perplexa, somente compreendida a posteriori, que suas ferramentas eram brinquedo de criança para tentar compreende – e mudar – a realidade.

Tudo que é sólido se desmancha no ar!

Com a sociedade complexa e o capitalismo se sofisticando – impossível ter um Karl Marx de hoje que tenha uma produção intelectual para construir uma cosmovisão do homem, da sociedade, do Estado e de seus fluxos contraditórios que forjam a história – entra-se na era da informação.

Agora foi que lascou tudo! (pensam os filósofos da nossa era)

Com a sociedade da informação e, principalmente com a internet e seus efeitos reestruturadores nas formas de comunicação, tudo é transformado: a economia, a sociedade, o Estado e o sujeito. Tudo se desprende, numa absurda velocidade, movido pela voraz força inovadora das tecnologias numa desubjetivação do sujeito nesse mar de informação difuso, com sentido errático, conduzindo-nos sempre, e cada vez mais, a atendermos às demandas de consumo desse capitalismo informacional, nutrindo nossa alienação num fluxo de narcísisico-voyerista-facebookeano onde a imagem se torna elemento predominante sobre o texto, a escrita e o pensamento.

Ou seja, vivemos paradoxalmente capturados pelo universo da alienação do sujeito que se funda num mar de conhecimento e informação. Se antes a fonte da alienação estava na inserção do sujeito na produção, agora esta força alienadora, com a internet, invadiu sua vida de maneira profunda e irreversível.

As manifestações sociais que inundaram as ruas do Brasil em Julho de 2013, organizadas pelo poder mobilizador das redes sociais, é um importante sintoma político que nos aponta um vigor da sociedade civil (o pulso ainda pulsa) contra o Estado. Contudo, não tentemos compreender depressa demais este fenômeno, nem sobre ele depositar exagerada confiança, pois falta-lhe consistência ideológica; falta-lhe uma weltanschauung direcionada à transformação das formas arcaicas de representação política – o político está se transformado em objeto obsoleto de representação da sociedade civil – que conduza estas instâncias, Estado e Sociedade, para um patamar histórico à altura das transformações tecnológicas.

Sem estas condições, as manifestações urbanas de julho de 2013 terão sido apenas um espasmo – importante, certamente – de um corpo em agonia pela eterna alienação do sujeito à instância do poder político que rege e molda nossas vidas.

 * O Pulso ainda pulsa (Titâs) 

 

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com