O golpe de 1964, há exatos 50 anos atrás, não implantou no Brasil uma ditadura mas uma sucessão de ditaduras com características diferenciadas no grau e intensidade de autoritarismo. Na exaustiva análise histórica deste período, Élio Gáspari deu títulos aos quatro volumes que expressam bem as várias fases do regime militar ou as diferentes ditaduras: Ditadura envergonhada, Ditadura escancarada, Ditadura derrotada, e Ditadura encurralada. Acompanhando o desempenho da economia no período, estas ditaduras (ou fases da ditadura) se diferenciam pela violência da repressão e da censura, pelo grau de apoio civil, e pela hegemonia no corpo militar.
Do golpe até o final de 1968, com a implantação do Ato Institucional nº 5, a ditadura foi relativamente branda com espaços para a manifestação da oposição e mobilização da esquerda, para o funcionamento da imprensa e mesmo para movimentação política no Congresso. Esta ditadura “envergonhada” refletia o pensamento dominante nas lideranças militares (que não pretendiam se perpetuar no poder), a pressão de antigos aliados civis desejosos de eleições, como Carlos Lacerda, e o lento distanciamento da classe média na medida em que a economia entrava em recessão. A unificação das Forças Armadas e o apoio dos partidos conservadores, da grande imprensa e da classe média urbana (assustada com os movimentos sociais e a instabilidade política) começam a desmanchar na medida em que vão sendo definidos a política econômica e o sistema partidário e eleitoral.
Neste período, a oposição democrática, inclusive da esquerda ilegal, se movia com relativa desenvoltura e conseguia mobilizar grandes manifestações de rua com discurso contra a ditadura e pelo socialismo. O auge desta atuação política contra a ditadura foram os protestos e críticas em larga escala em 1967 e 1968, ganhando a simpatia de amplos setores da Igreja Católica e de importantes lideranças políticas que tinham apoiado o golpe mas se afastavam do poder militar. Esta configuração penetrou o corpo militar desmontando a hegemonia da Escola Superior de Guerra liderada por Castelo Branco que tinha morrido um ano antes e abrindo caminho para a “ditadura escancarada”.
O AI-5, assinado no final de 1968, inaugura uma nova fase do regime militar evidenciando uma redefinição da hegemonia nos quarteis com o predomínio da chamada linha dura. As ameaças da oposição na primeira fase, incluindo os políticos civis e a imprensa liberais e a emergência da luta armada, jogaram o governo na defensiva e, como resultado, fortaleceram os segmentos mais radicais dos militares na disputa interna. Este momento coincide, no entanto, com o início da recuperação da economia brasileira, o chamado “milagre econômico” com crescimento em torno de 7% ao ano, levando a uma anestesia política dos brasileiros com o aumento significativo da renda e do emprego. O período do presidente militar Emilio Garrastazu Médici foi o mais negro da história política brasileira mas, ao mesmo tempo, o de mais rápido crescimento econômico do Brasil. O lema “Prá frente Brasil” traduz bem este momento de quase euforia na sociedade brasileira, enquanto a esquerda, isolada e perdida, era violentamente desmantelada pela repressão e a oposição democrática sobrevivia como podia nos limitados espaços de atuação.
Os brasileiros pareciam alienados e dominados pelo sucesso econômico mas a violência da repressão e a escala da censura jogou na oposição os liberais e a Igreja Católica, incluindo a grande imprensa. Paradoxalmente, o sucesso econômico e a limitação da oposição ao antigo MDB preparou o ambiente político para novas expectativas da sociedade que se manifestam nas eleições parlamentares de 1974 com grande vitória do partido de oposição. O novo sindicalismo começa a emergir como resultado do dinamismo da economia e expansão do emprego em segmentos econômicos modernos. Esta eleição abre uma nova disputa interna nas Forças Armadas: a intelligentsia da Escola Superior de Guerra e seus aliados civis entendem que devem preparar uma transição para a democracia – lenta e gradual como dizia o general Ernesto Geisel – mas os setores da linha dura pretendiam, ao contrário, acabar com os espaços que sobravam para manifestação política no Brasil.
Este racha político nas Forças Armadas dominou todo o período restante da ditadura o que demonstram os eventos dramáticos da morte de Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, a bomba do Riocentro, as demissões de chefes militares, os avanços e recuos do projeto de Geisel. Este ciclo evoluiu com o movimento pela anistia, as eleições de 1978 com fortalecimento da oposição democrática e a consolidação da hegemonia de Geisel nas Forças Armadas, convergindo para a decretação da Anistia em 1979. A economia brasileira ainda cresce em ritmos altos e em intenso processo de modernização – a “marcha forçada” de que falava Antônio Barros de Castro – mas recebe os impactos da crise do petróleo e dificuldades no comércio internacional.
A anistia inaugura a última fase da ditadura militar com a volta dos exilados, alguns com grande prestígio e liderança política, como Miguel Arraes e Leonel Brizola, e a reanimação política da sociedade. O movimento de redemocratização ganha força e conquista as ruas com as manifestações das Diretas Já e mobilização em torno das eleições para os governos estaduais e para o Congresso. Fragilizada, a ditadura apenas administra o seu final tentando conter o ritmo das mudanças e, ao mesmo tempo, controlando a resistência dos setores radicais da direita militar saudosa dos anos de chumbo.
A última ditadura (ou a última fase da ditadura militar) acabou em 1985. Tudo indica que esta terá sido também a derradeira ditadura do Brasil considerando as instituições democráticas que foram construídas e a consciência da sociedade, mesmo na juventude que não conheceu os anos duros das ditaduras. Mas não custa alertar: está se formando um ambiente de grande intolerância política no Brasil e existem ainda vários segmentos com visível vocação autoritária. Ditadura, nunca mais! De nenhum tipo, nem velada nem aberta, e de nenhuma orientação política.
Bom artigo, Sérgio. Gostei. Um reduzido mas bom e lúcido
retrato/extrato dos 21 anos de ditadura.
Uma não mera questão de semântica.
Na fase em que nos encontrávamos em transição “lenta e gradual”para a democracia, numa manhã em que um grupo subia em elevador da Sudene para trabalhar na, então, Divisão de Demografia, aconteceu de ousadamente alguém perguntar o que achávamos do discurso do Geisel na noite anterior. A maioria ficou calada como era de costume. Mas alguém lembrou que o general falara que já estávamos numa democracia… Outro retrucou: mas “relativa”foi o que ele disse! Então como era também de costume (mesmo estando desde 1964 em “liberdade vigiada”), não fiquei de boca fechada e disse: sem essa de “democracia relativa”, há democracia ou não há!
Nesse momento o elevador parou no nosso andar, nos encaminhamos para a sala de Demografia onde o telefone já estava tocando. Imediatamente, uma daquelas que nunca dava opinião e se mantivera calada no elevador, apressadamente vai atender: alô, democracia… Caí na gargalhada enquanto, lívida, ela se corrigia: não, não, é demografia!
Excelentes análises, as desta edição do Jornal Que Será ?
Vejo o comentário de um velho companheiro nosso, o Zito, elogiando o artigo de Sérgio C. Buarque.
Comungo com a mesma opinião.
Parabéns,
Paulo Emílio.