Alduísio Moreira de Souza. Memórias quase esquecidas (volume 1 Aqueles Olhos). Porto Alegre: AGE; São Paulo: Giordano, 2001.

 Teresa Sales

Tortura.

Tortura.

Com as Comissões da Verdade, o Brasil começa a conhecer mais a tragédia dos sobreviventes através de seus depoimentos, indispensáveis para a história de nosso povo. Não foram poucos os que morreram em combate e cada um de nós, da geração de 1968, tem sua lista de amigos arrancados da vida nos verdes anos de sua utopia. Esses testemunhos se juntam a uma já extensa, embora ainda incompleta literatura sobre o período da ditadura militar de 1964 a 1985 no Brasil.

As análises históricas e sociológicas procuram dar conta da tragédia, dos equívocos, das causas, das consequências. Essas análises serão tanto mais completas quanto mais se beneficiarem do testemunho pessoal dos que foram atores em um tempo sombrio de nossa história.

Memórias quase esquecidas conta a história de um desses revolucionários (contra a ditadura militar) sobreviventes. Para ele, como para mim, leitora, no contexto de seu livro e do diálogo que com ele estabeleço, importa menos as razões ou des-razões da luta do que o seu valor de humanidade e de tragédia.

Quando Alduísio Moreira de Souza escreveu o primeiro volume de suas memórias, já era psicanalista com formação em Paris exercendo sua profissão em Porto Alegre e, mais importante, profundo conhecedor da obra de Guimarães Rosa. Ressalto esse último atributo do autor por tudo o que tem a ver a sua narrativa com os sertões mineiros de Rosa.

Percorremos quase de um fôlego as duzentas e quarenta e duas páginas iniciais do livro em Minas Gerais, na Fazenda Velha de Baixo, em Uberaba, no sertão de Mato Grosso e Goiás. Lugares inseparáveis dos causos na linguagem do grande mestre mineiro da palavra, apropriada com maestria pelo narrador e personagem das Memórias quase esquecidas.

O livro se compõe de seis capítulos. Apenas no primeiro, sobre a narrativa da festa de Nossa Senhora da Abadia; a política tal como se fazia naquele tempo e naquele lugar; o mineirinho valente, na figura animal do Caracu, que enfrenta o forasteiro, na figura do leão de circo; apenas nessas páginas iniciais ele reproduz a história contada pelo pai, figura central em toda a sua narrativa.

A partir do segundo capítulo até o penúltimo, o narrador é o menino. “Havia um clima de mistério pairando na Fazenda Velha de Baixo”. (pag. 69). A decifração desse mistério, a meu ver, é um dos elementos mais ricos da narrativa. O medo do menino adentrando sozinho na mata; as dúvidas nunca esclarecidas; a pedagogia da palmatória e do cinturão; a solidão sofrida na mangueira do fundo do quintal vendo o monjolo em seu movimento contínuo, sem pensamento, querendo ser ele mesmo monjolo para aplacar o não entendido.

As memórias de Alduísio foram vividas e depois escritas sob o signo da paixão. Paixão em seu duplo significado de prazer e de dor.

Somente passados mais de dois terços da narrativa, no capítulo final, o autor inicia a peripécia de sua atuação no movimento estudantil e partido clandestino. “Parti de vez para o mundo. O risco. O sonho. A construção de minha utopia.” (pag. 242)

A meu juízo, as sessenta e oito páginas do último capítulo, “Estranhamentos”, consegue a façanha de narrar as memórias do período mais negro da repressão militar dos governos militares, que lhe deixou marcas para o resto da vida, em diálogo com as memórias telúricas do menino que se fez homem em terras sertanejas das Minas Gerais.

A opção revolucionária nascida da participação no movimento estudantil terá motivos especiais na trajetória de cada jovem, nos conturbados anos do final da década de 1960 e primeiros da de 1970, nos quais avultam o fatídico Ato Institucional número 5 e o Decreto 477. Os motivos de Alduísio, no decorrer de sua travessia pelas tarefas clandestinas e depois nos porões da ditadura, são narrados como se estivessem atados às suas pretéritas vivências e aventuras sertanejas.

O “ponto”. Qual militante não lembra seu primeiro ponto clandestino? A tentativa de ser frio e corajoso, quando por dentro estava morrendo de medo? À página 254 Alduísio descreve a cena: ouvia com atenção as explicações da linda moça, quase uma menina, que lhe dizia das estradas cheias de barreiras, depois de várias “quedas” de companheiros. Num fluxo de consciência pelas palavras, o jovem militante “ouvia longe. Viajei para o sertão. Estradas. Barreiras. Ah! Os atoleiros. As barreiras das estradas. Veio até a queda da vaca no esbarrancado da preguiça, lá na Fazenda Velha, de vovô Cazeca”.

São muitas as cenas da infância que reaparecem na memória do narrador/personagem ao descrever a militância e até a tortura. O pai quase lhe acompanha nas incompreensões do novo, como nas dúvidas do menino sobre os assuntos de gente grande. Foi assim na primeira reunião, onde mal compreendia do que falavam os companheiros, como se o pai estivesse por perto lhe dizendo, “um corpo de homem e uma cabeça de criança” (pag. 256)

A nomeação “Estranhamentos” para o capítulo derradeiro não poderia ser mais apropriada. O autor não discute posições políticas. Expõe seu sentimento, seus renascimentos a cada novo desafio. A vida intensa que quem viveu a militância sabe.

Até quando, à frente da organização de uma reunião nacional numa fazenda fora do Plano-piloto – “pontos, senhas, condições de viagem, planos de hospedagem e tudo o que implicava uma reunião clandestina em 1968” (pag. 264) – levou-o aos porões da ditadura. Diferentemente do Congresso de Ibiúna, sua astúcia desviou os militares da rota do congresso o tempo necessário para a fuga dos companheiros. Pagaria um preço alto por essa ousadia, que somente a proteção de Nossa Senhora da Abadia (com todos os demais que ele cuidadosamente nomeia no livro, evidentemente sem se referir à Nossa Senhora mineira que digo eu agora) lhe livraria de ser mais um na lista dos desaparecidos políticos.