Cristovam Buarque

O Brasil se orgulha de respeitar os direitos humanos, porque proíbe tortura. Mas tolera o analfabetismo de adultos, violência tão ignorada que o assunto não é referido no Programa Nacional de Direitos Humanos, apesar de o analfabetismo de adultos representar pelo menos dezesseis violências contra os direitos humanos.

1. O analfabeto não tem o direito pleno de ir e vir: não está encarcerado, mas não lê as placas dos ônibus que precisa usar, as indicações nas estações, metrôs, sua liberdade de movimentos fica limitada. Não sabe ler a palavra “perigo”, e caminha sem perceber o risco avisado: altura do abismo, cachorro bravo, trânsito rápido. A maior parte dos acidentes em construções civis no Brasil é devido ao analfabetismo da vítima, que não soube ler o anúncio.

2. Quem não sabe ler fala com menos quantidade de vocábulos, com sintaxe e gramática que não lhe permitem usufruir de todo o poder da fala que os direitos humanos deveriam respeitar.

3. Não tem o direito de participar integralmente dos assuntos da sua sociedade e do mundo. Deu-se ao analfabeto o direito de votar. Mas vota sem saber plenamente em quem, até porque vota pelo número. Não lê o nome dos candidatos, nem os panfletos distribuídos por eles na campanha, não conhece os programas dos partidos, nem dos candidatos. Não tem o direito pleno de participar.

4. O Brasil se orgulha de ser um país com imprensa livre, os donos de jornais defendem a imprensa livre, sem ao menos lembrar que seus jornais são integralmente censurados para 13 milhões de brasileiros adultos. Nossa liberdade de imprensa não chega para dezenas de milhões de analfabetos plenos ou funcionais

Thomas Jefferson disse que um país só é democrático quando “há liberdade de imprensa e todos sabem ler”. No Brasil, esquecemos “e todos sabem ler”. Há quase 250 anos, ele tinha consciência de que a alfabetização era um direito humano fundamental, que os defensores dos direitos humanos no Brasil esquecem até hoje.

5. O analfabeto não tem direito sequer de procurar emprego, por não ler anúncios classificados nos jornais. Mas se alguém o auxilia, certamente não encontrará emprego para quem não souber ler.

6. O analfabeto não tem o básico direito à escolha. Em 2003, o Ministério da Educação preparou uma sala onde as pessoas entravam e se sentiam analfabetas: as letras de todos os informes, placas, nomes de remédios e comidas estavam embaralhadas. As pessoas descobriam e o que é não saber escolher ônibus, tomar remédio com confiança; escolher o que comer. Tudo dependia de alguém ao lado. Por isso o analfabeto evita o supermercado. Na venda da esquina, pede oralmente o que quer; no supermercado tem dificuldades, porque as mercadorias estão escritas.

7. Também não tem o direito humano de instruir o filho e a filha. Não consegue ajudar nas lições de casa do filho que aos seis, sete anos já aprendeu a ler. A partir de certa idade todo filho evolui e o pai perde condições de ensiná-lo, mas até certa idade, o pai alfabetizado pode ajudar os deveres de casa e acompanhar o filho. O analfabeto está impedido dessa participação desde o início da educação do filho.

8. Quem é prisioneiro do analfabetismo não tem tampouco o direito fundamental de escrever e ler uma carta do filho, do pai, da mãe. Esse direito humano deve estar na lista dos direitos fundamentais e para isso é preciso alfabetizar todos os adultos.

9. Uma pessoa analfabeta pode evoluir, mas só depois que deixa de ser analfabeta. No estado de analfabetismo, não tem como exercer o direito humano de lutar para evoluir na sociedade moderna.

10. Temos Estado laico, liberdade para cada um escolher sua religião, mas ao manter o analfabetismo, o Estado laico impede a possibilidade do exercício pleno da religião, porque nossas religiões têm textos sagrados e quem não os lê pratica limitadamente sua religião. Nós não estamos respeitando o direito humano de praticar plenamente a religião. O analfabeto assiste à missa sem poder ler. Essa é uma das razões pelas quais o primeiro grande passo de alfabetização no mundo foi de Lutero. Ao defendeu que todos lessem a Bíblia, traduziu-a do latim para o alemão e fez uma grande campanha de erradicação do analfabetismo para que todos lessem a Bíblia.         11. O direito à rebeldia é fragilizado. No mundo de hoje, é difícil ser rebelde sem saber ler e escrever. A pessoa pode ter a vocação íntima à rebeldia, mas pratica uma rebeldia limitada, fragilizada, se não for capaz de ler e de escrever.

12. Um analfabeto pode ter o prazer estético na escultura e na pintura, embora a falta de leitura dificulte mesmo esse prazer, mas não consegue usufruir das obras da literatura, e fica sem o direito ao pleno prazer estético.

13. O direito à inclusão social. Em uma tribo indígena em que ninguém sabe ler, todos são incluídos, mas na sociedade moderna, quem não for letrado não se inclui socialmente.

14. Direito ao futuro. A pessoa que não sabe ler tem dificuldade de penetrar no futuro, porque o futuro é letrado, exige compreensão das coisas escritas, exige escrever.

15. O analfabetismo é uma forma de tortura constante. Tantas lutas fizemos para acabar com a tortura no Brasil, tantos morreram sob tortura e contra a tortura, gritando “Tortura Nunca Mais” e nem lembramos que sobrou a tortura do analfabetismo. O prisioneiro do analfabetismo é torturado todos os minutos em que está acordado convivendo com o mundo moderno. Sofre tortura brutal, não física, mas mental.

16. Conhecer a bandeira do seu País é um direito humano fundamental negado aos analfabetos brasileiros. O analfabeto brasileiro não conhece a bandeira do seu país. Se forem misturadas as letras do lema “Ordem e Progresso”, um analfabeto continua achando que é a bandeira brasileira. Ao negar a alfabetização a 13 milhões de brasileiros nos tempos de hoje, 30 ou 50 ao longo de nossa história republicana, o Brasil lhes nega direito de desenhar sua própria bandeira, porque ela precisa ser escrita.

Se deseja cumprir plenamente os Direitos Humanos, o Brasil deve erradicar o analfabetismo ou tirar o lema “Ordem e Progresso” da nossa bandeira. Nada deve estar escrito na bandeira antes de declararmos com credibilidade que o Brasil é um território livre do analfabetismo. Lamentavelmente temos hoje duas vezes mais analfabetos do que quando a nossa bandeira foi criada.         Em 1889, o Brasil tinha 10 milhões de habitantes dos quais 6,5 milhões eram analfabetos, hoje são 10%, mas correspondem a 13 milhões. E a bandeira é republicana. Foram republicanos que a fizeram. Tiveram a sofisticação positivista de escolher o lugar de cada estrelinha representando o céu do Brasil no dia 15 de novembro de 1889, e não se lembraram de que 65% dos cidadãos daquela república não iam compreender a bandeira que eles inventaram. Foram republicanos brasileiros, os republicanos que consideram que o povo se limita à elite alfabetizada, rica, instruída, e ignoram o povão que não conseguiu passar pela barreira do analfabetismo. A mesma elite que cento e vinte anos depois se orgulha de respeitar os direitos humanos sem se preocupar em mudar a bandeira ou erradicar o analfabetismo.

Mesmo os militantes pelos Direitos Humanos esquecem da violência que é o analfabetismo. Falamos em defender os Direitos Humanos e não incluímos a erradicação do analfabetismo no Programa Nacional de Direitos Humanos.

Durante o regime militar, a tortura maltratava os corpos, mas sua erradicação não foi tarefa do Ministério da Saúde, e sim dos militantes pelos Direitos Humanos. Da mesma maneira como a luta contra a tortura não era um assunto do Ministério da Saúde, a luta contra o analfabetismo não é tarefa do Ministério da Educação. A erradicação do analfabetismo deve ser apenas responsabilidade do Ministério dos Direitos Humanos. É ali que deve estar o compromisso. A erradicação deve ser feita por educadores, mas a luta pela erradicação deve ser por dos militantes pelos Direitos Humanos.

Para isso, é preciso parar de ignorar as violações invisíveis aos Direitos Humanos.