Luciano Oliveira

Cena do Filme O Artista - MIchel Hazanavivius.

Cena do Filme O Artista – MIchel Hazanavivius.

Conceição Lafayette é professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, e mora em Recife “com o marido e dois cachorros”. Essa nota tão simpática logo na “orelha” do seu livro (Curitiba, Editora Appris, 2012) dá o tom que Conceição imprimiu a um trabalho que, mesmo sendo acadêmico – pois é a versão publicada de sua tese de doutorado –, não descuida de algo que a produção universitária brasileira tem negligenciado desde que se estruturou a pós-graduação entre nós: a prosa limpa, clara, gostosa de ser lida – o famoso “saber com sabor”, como disse certa feita Roland Barthes. Sabor, aliás, que já se encontra no próprio título do livro, um aforismo que é literalmente um achado, pois a frase é uma adaptação do que disse à autora uma de suas informantes, de codinome Luciene, que lá pelas tantas observa: “a gente não conta tudo não, ao marido”. Bravo, Luciene! Tanto mais que (por que não reconhecê-lo?) não se diz tudo a ninguém – nem ao marido, nem à esposa, e, suspeito, nem mesmo ao psicanalista…

O livro de Conceição trata de “família, casamento e autonomia entre mulheres do início do século XX”, como informa seu subtítulo. Não de todas as mulheres, evidentemente. Mas de mulheres brasileiras, recifenses (por nascimento ou adoção), nascidas entre as décadas de 20 e 30 do século que passou, todas pertencentes a essa coisa meio difícil de precisar que chamamos de “classe média” – ou seja, não são riconas, mas também estão longe de ser pobres, pois todas elas (as vinte mulheres com quem Conceição teve longas conversas) sempre contaram com a mão-de-obra das empregadas domésticas para exercerem o poder que detinham no espaço da casa, no sentido físico e sociológico da expressão. Não eram santas nem megeras. E também não eram simplesmente vítimas passivas da opressão masculina, pois sabiam se virar na base da astúcia – “a astúcia que a mulher tem e que o homem não tem”, como diz outra informante, Rita – o que, se de um lado reforça o mito do “eterno feminino” tão denunciado pelo movimento feminista, de outro lança luz sobre algo que esse mesmo movimento, ao enfocar prioritariamente (quiçá exclusivamente) a subordinação feminina, não é capaz de ver pelo próprio recorte político e teórico que faz: as mais diversas estratégias de que mulheres lançam mão para escapar à submissão e exercer poder.

Ou seja: essas mulheres são bem mais do que categorias sociológicas, são gente. Nascidas num mundo e num contexto social em que o casamento (mais uma vez, no sentido físico e sociológico da expressão) era o seu destino natural, viveram no século em que se deu a grande mutação: a revolução feminista. Óbvio: nenhuma delas era feminista – ainda que pelo menos uma delas, Marlene, neta de um barão do Grão-Pará, tenha aderido à Teologia da Libertação, para onde foi levada pelo seu envolvimento com o catolicismo – que era o catolicismo do Concilio de Trento quando foi normalista e, depois, tornou-se o catolicismo de Dom Hélder. (Bravo, Marlene!) Marlene, todavia, mesmo com essa ascendência, chegou a “costurar para fora” para complementar a renda da família no início do casamento, quando seu marido ainda era um pequeno funcionário. Exemplos como esse nos levam ao ponto central da tese: as relações de gênero vivenciadas por mulheres de camadas médias no início do século XX, as quais, mesmo submetidas a uma poderosa estrutura de dominação – a família patriarcal –, exerceram, a partir dos recursos de que dispunham (recursos em dinheiro que elas mesmas produziam ou economizavam, mas também em “astúcia”), autoridade sobre as pessoas em volta, inclusive os maridos, mediante estratégias que ora negavam, ora confirmavam o modelo de família em que o homem, provedor, era o “chefe de família”.

Chefe, sim. Mas, como se diz, “da boca pra fora”. No caso, “da casa pra fora”. Lá dentro havia, quase sempre, pouca ingerência de sua parte. Muitas vezes, aliás, interessar-se pouco pelos detalhes da vida doméstica era também uma estratégia deles: um modo de exercer o comodismo tão tipicamente masculino e, ao mesmo tempo, não procurar saber de fatos que poderiam ser “bastante ameaçadores” para sua autoridade. Veja-se o caso da mãe de Carmita, que merece reprodução:

“a mãe de Carmita conseguiu criar quatro sobrinhos órfãos, filhos de uma irmã, apesar das restrições impostas pelo marido: a permanência de dois dos quatro sobrinhos durante a manhã em casa era possível pela ausência do marido e pelo controle de sua hora de chegada, evitando o encontro entre eles. O mesmo se passava no turno da tarde com os outros dois que, pela manhã, estavam na escola. Chegavam após as 14h e saíam antes da volta do pai de Carmita para casa. À noite dormiam com outra tia, em uma casa alugada pela mãe de Carmita, numa rua próxima de sua casa. Tudo isso pago pela mãe.”

Lógico que, podendo fazer tudo isso, a mãe de Carmita não era uma Zezinha-ninguém. A própria Carmita “herdou uma grande soma em dinheiro e em bens”, o que permite entrever a situação materialmente confortável de que sua mãe desfrutou. Mas, para os propósitos do livro de Conceição, o que interessa destacar é que a mãe de sua informante teve a altivez, e mesmo a decência, de ajudar os sobrinhos pobres contra a vontade expressa do marido – que, seja dito num acréscimo cínico, provavelmente sabia dessas movimentações todas com hora marcada, mas preferia não tomar conhecimento…

Conceição Lafayette, que vem desse mundo, que presenciou na sua infância passada na casa dos seus avós, no sertão da Paraíba, o poder que detinham sua mãe e suas tias, depois ingressou na universidade em Recife, onde fez Ciências Sociais. Tinha virado uma intelectual urbana na época da virada histórica dos anos 60. Tomou conhecimento das teorias feministas sobre a condição da mulher, e compreendeu-as. Mas confessa nunca ter deixado de sentir certo desconforto pessoal: “de repente, o mito familiar perdeu força e foi substituído por outro, muito mais pessimista. Assim, eu me vi suspensa entre dois universos paralelos”. E um dia resolveu enfrentar essa questão. Sua tese de doutorado é o resultado desse enfrentamento. Sua contribuição para a sociologia e para a teoria feminista é mostrar que por baixo da submissão havia subversão; e que nem sempre as mulheres, como queria Simone de Beauvoir (aliás, uma autora que ela não cita), se deixavam definir pelo olhar dos homens como um ser sem essência, definido a partir do processo de objetivação produzido pelo olhar masculino.

Mas, para além disso – o que não é pouca coisa –, o trabalho de Conceição alia, à seriedade acadêmica, o “sabor” do vivido. A autora, coisa rara hoje em dia, escreveu uma tese gostosa de ser lida! Sua tapeçaria tem qualidades literárias que não devem passar em branco. Nisso, aliás, ela foi bem coadjuvada pelo seu “material empírico”. As mulheres que entrevistou são pessoas capazes de formulações bem torneadas e às vezes tocantes sobre sua condição no presente, como aquela observação, feita por uma delas, de que “a memória é a misericórdia de Deus”. A frase, de sabor proustiano, não passaria despercebida de proustianos famosos como Gilberto Freyre e Pedro Nava – este, meu Proust favorito! Noutro momento (para mim o melhor), uma das informantes, de codinome Lenita, relembra a presença do pai, dormitando depois do almoço antes de enfrentar o batente do turno vespertino: “A lembrança que eu tenho do meu pai é sentado na cadeira de balanço no terraço.” E vem em seguida uma nota que deixaria um Drummond admirativo: “Era como um lençol branco cobrindo uma cadeira”… Lindo!