Teresa Sales
30 de março de 2015

“A destruição da natureza é reversível”, repito, é a mensagem final do filme O sal da terra, dirigido por Win Wenders e Juliano Ribeiro Salgado, em cartaz desde esta semana nos cinemas brasileiros. Filme imperdível. Mas se prepare: ninguém sai imune do apelo irresistível da arte de Sebastião Salgado, objeto do documentário.

Lembro o dia em que Sebastião Salgado me capturou. Estava na sala de José Xavier Cortez para assinar o primeiro contrato com a editora. Enquanto o aguardava, não consegui tirar os olhos de uma imagem do grande fotógrafo: os pés maltratados pelo trabalho na terra de três homens do campo. É um quadro impactante.
Ainda estava absorta na contemplação quando fui interrompida pela sua chegada. Esperava encontrar um editor com marcas de descendência espanhola, quando me aparece um autêntico papa-girimum. Afável como o sobrenome. Não precisou nenhuma pergunta. Suas primeiras palavras ao me cumprimentar: “é para eu nunca esquecer minhas origens”.

Cacoete de socióloga, logo me interessei pela história, mas estava ali o empresário que não tinha tempo a perder. Buscou em seus alfarrábios uma pasta de onde tirou cópia xerox de uma matéria publicada anos atrás n’O Estado de S.Paulo sobre sua trajetória de camponês a marinheiro, expulso da Marinha pelo Golpe de 1964, lavador de carro em São Paulo, até se tornar um dos grandes editores do país.

Sem compromisso de publicação, procurei-o anos depois, quando estava desenvolvendo novo projeto de pesquisa na Unicamp na minha área de interesse (movimentos de população) sobre nordestinos bem sucedidos em São Paulo. Cortez consultou a família, reuniu-se comigo e o conselho editorial, estava em dúvida. Finalmente, dispôs-se a percorrer o caminho de volta até suas origens, até os pés calejados de trabalhador rural onde se via retratado por Sebastião Salgado.

Assistir ao filme foi para mim tão impactante quanto a experiência de deslumbramento com a primeira foto. Da obra de Sebastião Salgado tenho acompanhado quase tudo. Meu interesse maior foi Êxodos. Um dever de ofício. Desses que sempre me causam frustração quando comparo minha pobre escrita com a grandeza da obra de arte.

No filme, fiquei sabendo do impacto do projeto Êxodos para a continuidade da carreira de Sebastião Salgado. Mesmo acostumado às misérias do continente africano captadas pela sua retina e as lentes da câmera, ele capitulou frente ao horror do genocídio de Ruanda em 1994, onde fora fotografar os deslocamentos populacionais decorrentes do conflito entre Tutsis e Utus. “Adoeci. Não tinha nenhuma doença infecciosa no corpo. Mas minha alma estava doente”

O genocídio de Ruanda é um ponto de inflexão não apenas na carreira do fotógrafo como no curso do próprio filme, que mostra a sua decepção com o “animal feroz” que são os homens. É para curar a alma que são gestados por ele dois outros grandes projetos. Um de fotografia, Gênesis. E outro quase visceral e que lhe trouxe de volta às suas origens de mineiro ribeirinho do Rio Doce: a criação do Instituto Terra, na antiga fazenda de seu pai em Aimorés, Minas Gerais.

Muito já se escreveu sobre Sebastião Salgado, fotógrafo de fama internacional. Jô Soares dedicou a ele um programa inteiro, hoje em dia disponível no Youtube. Porém poucos tiveram com ele a empatia e a admiração pela vida e pela obra quanto Win Wenders. Por isso faz um filme apaixonado pelo fotógrafo, que por sua vez é um homem apaixonado pela aventura de viver.

Essa paixão pela aventura de viver é sentida o tempo todo no filme. Nas falas dos dois diretores e do próprio Sebastião Salgado, ora tendo a grandiosidade da fotografia como pano de fundo, ora cenários antes retratados por ele.
O projeto Gênesis é o início da inflexão do fotógrafo social pelo fotógrafo da natureza. Salgado também voltou-se para a natureza através do Instituto Terra. Através deste, o nosso país ganhou outra sorte de patrimônio: o replantio e a reconstituição da Mata Atlântica.

Rendamos nossas homenagens aos mineiros por tantos projetos pioneiros. Sem esquecer nosso prêmio nobel de literatura (que nunca houve, mas devia de) Guimarães Rosa, foram os mineiros os primeiros a iniciar a saga das grandes migrações internas brasileiras, assim como, décadas depois, das migrações internacionais, cujos pioneiros saíram das mesmas margens do Rio Doce onde se encontra o Instituto Terra. E foram ainda um mineiro, nesse Instituto Terra, de preservação da natureza, assim como outro, no Museu Inhotim, de preservação das artes, pioneiros em iniciativas privadas voltadas para o bem público, quando nosso país, de tradição patrimonialista, notabilizou-se pelo inverso.
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