João Rego

Para Gorki, meu cão.

Portrait of Pope Innocent X - Francis Bacon.

Portrait of Pope Innocent X – Francis Bacon.

 

Somos constituídos por desejos. Essa é a nossa essência. Se o desejo só é possível como falta, então podemos inferir que somos sujeitos em busca desesperada e incessante de algo que supra esta falta. Buscamos um sentido possível para nossa existência. O Objeto entra nesta relação para tamponar a angústia do vazio que nos funda como humanos.

Através das identificações, em uma relação de objeto, fluem nossos afetos e com eles nos agarramos a nossa existência, construindo e reconstruindo, as vezes fortes, outras vezes fracos, vínculos de amor. Deles nos alimentamos, permitindo-nos, em alguns momentos, um sentimento de êxtase e completude, mesmo que fugaz. É assim com uma paixão entre os amantes; é assim com uma “revelação divina”; uma ideologia; com a fruição de uma obra de arte, uma droga ou um vício que nos sustenta.

Nosso inconsciente, estruturado como uma linguagem, brinca conosco, fazendo nos apaixonar sem termos pistas de como foi forjada essa paixão; nos deixa ser capturados por uma ideologia ou religião, muitas vezes por um discurso carregado de significantes, sobre os quais não temos nenhum controle. Somos alienados de nós mesmos. Nosso Eu é um mero objeto desse desejo inconsciente que funda e opera nossa existência. Para a psicanálise, o Eu é o universo supremo das alienações.

Sou onde não penso, e penso onde não sou. ( Lacan)

Esta complexa operação só é possível através da linguagem. O sujeito ao inconsciente é aquele vazio que possibilita o deslocamento da cadeia de significantes.

Toda palavra carrega em seu bojo o desejo. (Freud em A Interpretação dos Sonhos.)

A linguagem nos atravessa como portadora do desejo nos constituindo, fazendo efeito transformador em nosso espírito.

A perda do objeto amado — sim, a morte é uma companheira inseparável da vida, embora significante inacessível à nossa consciência — nos causa uma fragmentação interior, pois aquilo que achamos que somos (o Eu), onde atua nossa consciência, está impregnado, comprometido, ancorado nessa relação libidinal com o objeto amado. A perda desse objeto que nos constitui, quer seja pela “visita” inesperada da morte de um ente querido, uma doença debilitante e prolongada, ou ainda um simples abandono do amado, nos projeta de volta ao vazio, ao luto, ao sofrimento.

O Eu é uma decantação das nossas relações libidinais vividas por nós: amores perdidos, ideais abandonados, enfim, restos passados, presentes e latentes, estabelecidas por meio das identificações que nos constituíram, desde nossa pré-história, quando éramos ainda puro desejo dos nossos pais, antes mesmo da nossa existência biológica, não cessando de tecer-nos ao longo da nossa vida.

Penso que existem duas importantes instâncias que nos envolvem tentando solucionar esta angústia: a primeira é a religião, que situa o homem diante do Universo como herdeiro de um Pai absoluto que a tudo controla e tudo vê, inclusive nos possibilitando a expectativa de uma existência após a morte; a outra são as ideologias políticas – que em alguns casos têm uma enorme e perigosa área de intersecção com a religião – nos dando a “certeza cega” para um sentido em nossa existência aqui na terra. O grande problema dessas instâncias é que sempre há furos em seu conjunto, sendo o mais grave deles – uma vez que estou em meu terreno seguro, sei que vou ter vida após a morte e sei que minha ideologia é a melhor para a sociedade – a impossibilidade de aceitar a diferença que há no outro.

Distancio-me do outro por fazer parte de um sistema “cego de certezas”, fechado, completo e esse outro, se eu não cooptá-lo ou convertê-lo, devo destruí-lo, pois é uma ameaça ao meu “castelo de cartas” tão bem elaborado ao longo dos séculos – no caso da religião -, ou das ideologias, estas, fenômeno mais recente. Foi assim com o judaísmo, foi assim com o cristianismo, foi assim com o nazismo, com o stalinismo, com os crimes de homofobia e contra minorias raciais, e por aí vai.

Vemos, estarrecidos, os fundamentalistas do Grupo Estado Islâmico (EI) construindo seu universo ideológico-religioso degolando o “outro” em frente das câmeras, ou queimando-o vivo, dentro de uma jaula, numa dolorosa prova de realidade para nós, de que o processo civilizatório, que tanto evoluiu nestes últimos milênios, não segue uma linha ascendente e contínua. Assim como o sintoma psíquico irrompe com intensa angústia demandando uma fala que mate “a coisa”, a barbárie surge abruptamente, a cada guerra, a cada morte violenta de um homem contra outro homem, desafiando nossa compreensão sobre a humanidade.

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Recife, 11 de março de 2015.