João Humberto Martorelli

Tomar o povo a praça é normal e justo no regime democrático. Na história recente do Brasil e do mundo, páginas indeléveis foram escritas pelas manifestações de rua contra o abuso de poder, a corrupção e a falta de liberdade, destacando-se as manifestações em favor das Diretas, os caras pintadas contra Collor, as passeatas de junho de 2013, a primavera árabe, todas devidamente inseridas no espaço das garantias democráticas, a dizer, no Estado de Direito e democrático. É importante salientar que tais manifestações, no caso brasileiro, foram possíveis em razão da anterior conquista da democracia, que vem a ser um sistema de governo contendo um arcabouço de normas e instrumentos de acesso do povo ao poder, cabendo-lhe, ao povo, coordenar a própria estruturação das instâncias administrativas, de execução, legislação e julgamento (a estrutura clássica justapõe como harmônicos os poderes executivo, legislativo e judiciário). Impõe-se anotar ainda que a conquista da democracia, no Brasil, resultou de forte esforço das gerações anteriores, cujos jovens foram torturados, privados de liberdade e excluídos da vida pública brasileira. Respeitar a democracia por eles construída é o mínimo que se pode esperar da geração atual. O que é espaço democrático? É aquele em que há palavras para todos os gostos, ouvidos para todas as vozes e vitoriosos sem derrotados, convivendo aqueles que disputaram opiniões de maneira pacífica, após o embate, sem ataques pessoais, a democracia pressupondo necessariamente o respeito ao indivíduo diferente, à ideia diferente, à convicção diferente, é o mundo da pluralidade e das diferenças que convivem e devem conviver harmoniosamente e com respeito recíproco, preservando- se especialmente as relações pessoais. Urbanidade e educação fazem parte desse conceito, portanto. Essa é a razão principal por que choca tanto a invasão da esfera privada dos agentes de governo pelos movimentos sociais, a exemplo do que ocorreu recentemente com a ocupação da rua onde mora o Prefeito do Recife por integrantes do Ocupe Estelita. A ocupação em torno do prédio da Prefeitura e de praças e avenidas públicas, quando legítima a pretensão do grupo social reivindicante, e desde que observados certos limites de duração e de pacifidade, é razoável. Mas, de outro lado, a família do Prefeito e as famílias dos seus vizinhos têm direito à privacidade e a se manterem distantes da atuação governamental:  a casa do Prefeito é seu asilo inviolável, assim como é a casa de todo cidadão. Significa que ocupar o palácio pode; a casa do rei, não. No caso do Estelita, além do mais, com todas as vênias de seus integrantes, a legitimidade é muito questionável, porque a insurgência é contra a aprovação de um projeto que passou nas diversas instâncias de organização de nossa vida social, tratando-se  de reação infantil e lúdica, desrespeitosa, portanto, à democracia que lutamos para implantar.