Camilo Soares
fotógrafo e professor de cinema da UFPE
“Fechemos os olhos para ver”
(James Joyce, em Ulisses)l
Como gostaríamos que a profecia de Tirésias a Ulisses, que lhe previu uma morte longe (mesmo que vinda) do mar e uma doce velhice, houvesse ecoado no destino do menido Aylan Kurdi de 3 anos, pequeno migrante sírio afogado no mesmo mar da Odisseia de Homero. O adivinho cego de Tebas preveniu ainda ao herói da Guerra de Troia que Posseidon, senhor dos mares, andava em seu encalço depois dele haver cegado o ciclope que devorava sua tripulação numa parada do caminho de volta a Ítaca. Hoje, a fotografia do corpo de Aylan parece expressar, enfim, a tragédia nas margens do Mediterrâneo e ter acordado o olho do Ocidente para a decadência de seu mundo dito civilizado.
A travessia de Ulisses representa também a luta do homem para reencontrar seu lugar de equilíbrio com o cosmos, que na história moderna, como enumera Benjamin Stora, presidente do conselho de orientação do Museu da Imigração em Paris em artigo para o Le Monde, é muitas vezes um processo de exílio que se repete constantemente, quando um povo foge da ditadura, do obscurantismo, da falta de liberdade, da fome, como os armênios que escaparam do massacre no começo do século XX, dos republicanos espanhóis que cruzavam quase moribundos os Pirineus em 1939, dos sul-americanos ou vietnamitas dos anos 70 fugindo ditaduras sangrentas. Na rota mortífera dos refugiados atuais, a grande contradição europeia é, para Stora, combater a ditadura de Bachar Al-Assad ou a barbárie do Estado Islâmico e reprimir aqueles que as negam ou sofrem suas consequências.
Diante disso, os valores iluministas parecem jogados deliberadamente ao mar, quando a morte torna-se um simples instrumento de dissuasão pelo medo contra a travessia do Mediterrâneo pelos migrantes, procedimento sustentado por uma ilusão caduca e míope de identidade. Os direitos humanos vindos da crítica da moral kantiana, base da lei moderna, que rompeu com o mundo aristocrata da diferença natural entre humanos, é hoje uma lembrança quase perdida num porto distante de um mundo que deixa suas crianças morrerem em botes à deriva ao lado de resorts de luxo (ao dessa tragédia humana, por exemplo, o arquipélago de Galli, em Capri, tido como a ilha das sereias da Odisseia, é atualmente uma área privada vigiadíssima, alugada a 500 mil euros por mês). Aqueles que sobrevivem do mar são alvo de contínuas humilhações e penúria, barrados em estações de trens ou mesmo numerados, como fez a polícia tcheca, o que nos traz a lembrança inevitável dos campos de concentração. Será que foi preciso a fotografia de uma criança morta para que todos, como o policial que carregou o corpo de Aylan, lembrassem dos próprios filhos e da universalidade da história ? A trágica imagem do pequeno refugiado (independentemente se o corpo foi movido para ser fotografado ou se o pai era envolvido ou não com os traficantes atravessadores) nos conduz à percepção da atualidade pelo caminho interior de nossas lembranças e sentimentos mais íntimos, como um inelutável visível que nos faz fechar os olhos para ver.
Enquanto o mar Mediterrâneo se transforma num grande cemitério ao redor do mundo desenvolvido, na França os partidários do Front National gritam em coro “Estamos em casa” depois do discurso no qual a líder da extrema direita Marina Le Pen pede o fechamento das fronteiras, fazendo cair vergonhosamente o véu da falência da humanidade moderna que esqueceu que é uma só e que seus filhos sempre migraram e migrarão, sobretudo num mundo onde produtos comerciais circulam cada vez mais livremente. A Odisseia de Homero reflete, de certa forma, questões sempre atuais da migração, como diz o fotógrafo Michaël Duperrin, que passou os últimos dez anos registrando os suposto caminhos de Ulisses, pois evoca noções como exílio, identidade e a relação com o mundo dos outros : “A [redação da] Odisseia corresponde a um período de crise social na Grécia Antiga, quando muitos cidadãos emigram para o Sul da Itália.” lembra Duperrin para a revista Réponses Photo. No final, a epopeia de Ulisses é mais um conto como tantas histórias que nos lembram que somos todos de fora, em busca de um lugar onde dignidade e contentamento sejam possíveis.
Camilo, parabéns. Além de lúcido, seu comentário é poético. Para os curdos, hoje, navegar não é preciso, nem viver é preciso. Sem precisão,navegar e viver se tornaram necessários.
Obrigado pela leitura, Ester. Um amigo do mar me chamou atenção que o navegar requer mesmo uma precisão que no viver às vezes atrapalha. Nesse caso dos migrantes, tal precisão vira mesmo necessidade e improviso que o mar não perdoa. Enquanto isso, a humanidade deriva.
Pelo visto os refugiados da Síria, do Afeganistão, do Iraque, gostam mais “do Ocidente com sua decadência de mundo dito civilizado” que o articulista, pois estão tentando fugir do terror e da guerra rumo exatamente a esse mundo que, segundo o articulista, jogou seus valores iluministas ao mar. Será que o articulista notou que Marine Le Pen não é governo na França? Ao menos por enquanto, não é. Eu ainda prefiro a “civilização ocidental” aos países que ainda não conseguiram separar estado e religião, e acho de um simplismo (poético?) atroz dizer que as dezenas, talvez centenas, de crianças que morreram no rio Evros e no mar Egeu, tiveram esse destino porque a civilização ocidental “jogou seus valores iluministas ao mar”. O pior tratamento que os refugiados estão tendo se concentra nos países do Leste Europeu, como Hungria e alguns vizinhos, que nunca chegaram a ser campeões de iluminismo.
Cara Helga,
Obrigado pela crítica enriquecedora. Talvez o estilo desse breve texto não deixou claro que seu objetivo não era de analisar as razões (geopolíticas, históricas, econômicas, etc) dessa onda migratória, mas de testemunhar (moro na França) um sentimento de incômodo de parte da população quanto às contradições entre a imagem da civilização humanista europeia e a maneira da qual esse fenômeno tem sido tratado. A indiscutível ascensão da extrema-direita (aqui encarnada por Le Pen, agora a filha) é apenas mais um reflexo desse mal-estar. Para exemplificar tais contrassensos e algumas razões atuais desse fluxo (com tantas tragédias de travessia, que não é algo novo para a África negra), e para não só falar da Síria/Iraque, indico o relato esclarecedor da escritora senegalesa Fatou Diome sobre migração, para a TV francesa, resumido aqui (com legendas em português):
https://www.facebook.com/video.php?v=954629087926812
Ou o desabafo da também escritora (e ex-ministra da cultura do Mali) Aminata D. Traoré, para o Le monde (em francês) :
https://www.monde-diplomatique.fr/2015/09/TRAORE/53710
O bom de comentar é, depois, ler as reações ao comentário. Sua resposta esclareceu muito melhor a sua posição. Vou tratar de acessar os links que v. forneceu. Vejo que v. é um observador muito mais próximo do “clima” na França que, na verdade, eu só acompanho um pouco lendo Libération e Le Monde. Coitado do François Hollande, tendo que driblar a Marine Le Pen. Além disso, eu acho que há um limite físico (não só cultural ou político) para a capacidade de absorção de cada país.
Realmente, coitado do François Hollande, tendo que driblar, além da Marine Le Pen, uma escritora senegalesa tão articulada e indignada quanto Fatou Diome. Entendo que a indignação desta senegalesa tenha impressionado Camilo Soares. Mas ela é tão radical – atribuindo à Europa as mortes dos refugiados que tentavam alcançar a Europa – que tem toda a probabilidade de carrear votos para a Marine Le Pen. Para mim é mais uma situação em que o extremismo de um lado realimenta o extremismo do outro lado. Do mesmo modo que os cubanos anticastristas de Miami jogavam em favor dos “duros” partidários de Fidel, ambos contra a abertura e a melhora das relações Cuba-EUA.
Filho de Peixe, peixinho é.
Creio,pelo texto e pelo sobrenome, você é filho do Arlindo e da Nanci.
Pois bem, fiquei feliz ao ler seu texto, um tanto poético e metafórico, mas verdadeiro e atual.
Seu texto e sua luta me remeteram às migrações forçadas, que aconteceram no tempo da ditadura brasileira, inclusive a de teus pais.
Você teria se sentido um pequeno Aylan ???
Enxerguei, em seu texto, a situação vivida por seus pais, nos idos anos da Ditadura Brasileira.
Concordo que os extremos se alimentam, como os de direita fascista e os terroristas (como bem disse Laerte sobre o fato do atentado ter sido no jornal satírico Charlie Hebdo e não na sede do Front National). Mas o discurso de Diome, apesar de virulento, não me parece radical, apenas faz brandir os dentes de um discurso preponderante para o qual a Europa é simplesmente um exemplo a seguir e não parte de um sistema que proporcione o exílio (como diz Traoré sobre os acordos comerciais e políticos injustos, que permitem por exemplo que grandes navios pesqueiros industriais deixem os pequenos pescadores senegaleses desamparados ou que os tomates transgênicos espanhóis façam uma concorrência desleal com os agricultores locais). François Hollande parece não conseguir (falta talvez de coragem ou capacidade) contrapor tal discurso e apresentar respostas necessárias aos problemas franceses. Enquanto isso africanos fazem o que sírios, gregos e romenos fazem e o que franceses já começam a fazer em busca de melhores perspectivas, migram. Nada mais natural num mundo que é um só, cada vez mais, e para uma humanidade acostumada a enfrentar o mar.