Camilo Soares
fotógrafo e professor de cinema da UFPE

Ulisses e as Sereias - por Hebert Draper (1909).

Ulisses e as Sereias – por Hebert Draper (1909).

“Fechemos os olhos para ver”

(James Joyce, em Ulisses)l

Como gostaríamos que a profecia de Tirésias a Ulisses, que lhe previu uma morte longe (mesmo que vinda) do mar e uma doce velhice, houvesse ecoado no destino do menido Aylan Kurdi de 3 anos, pequeno migrante sírio afogado no mesmo mar da Odisseia de Homero. O adivinho cego de Tebas preveniu ainda ao herói da Guerra de Troia que Posseidon, senhor dos mares, andava em seu encalço depois dele haver cegado o ciclope que devorava sua tripulação numa parada do caminho de volta a Ítaca. Hoje, a fotografia do corpo de Aylan parece expressar, enfim, a tragédia nas margens do Mediterrâneo e ter acordado o olho do Ocidente para a decadência de seu mundo dito civilizado.

A travessia de Ulisses representa também a luta do homem para reencontrar seu lugar de equilíbrio com o cosmos, que na história moderna, como enumera Benjamin Stora, presidente do conselho de orientação do Museu da Imigração em Paris em artigo para o Le Monde, é muitas vezes um processo de exílio que se repete constantemente, quando um povo foge da ditadura, do obscurantismo, da falta de liberdade, da fome, como os armênios que escaparam do massacre no começo do século XX, dos republicanos espanhóis que cruzavam quase moribundos os Pirineus em 1939, dos sul-americanos ou vietnamitas dos anos 70 fugindo ditaduras sangrentas. Na rota mortífera dos refugiados atuais, a grande contradição europeia é, para Stora, combater a ditadura de Bachar Al-Assad ou a barbárie do Estado Islâmico e reprimir aqueles que as negam ou sofrem suas consequências.

Diante disso, os valores iluministas parecem jogados deliberadamente ao mar, quando a morte torna-se um simples instrumento de dissuasão pelo medo contra a travessia do Mediterrâneo pelos migrantes, procedimento sustentado por uma ilusão caduca e míope de identidade. Os direitos humanos vindos da crítica da moral kantiana, base da lei moderna, que rompeu com o mundo aristocrata da diferença natural entre humanos, é hoje uma lembrança quase perdida num porto distante de um mundo que deixa suas crianças morrerem em botes à deriva ao lado de resorts de luxo (ao dessa tragédia humana, por exemplo, o arquipélago de Galli, em Capri, tido como a ilha das sereias da Odisseia, é atualmente uma área privada vigiadíssima, alugada a 500 mil euros por mês). Aqueles que sobrevivem do mar são alvo de contínuas humilhações e penúria, barrados em estações de trens ou mesmo numerados, como fez a polícia tcheca, o que nos traz a lembrança inevitável dos campos de concentração. Será que foi preciso a fotografia de uma criança morta para que todos, como o policial que carregou o corpo de Aylan, lembrassem dos próprios filhos e da universalidade da história ? A trágica imagem do pequeno refugiado (independentemente se o corpo foi movido para ser fotografado ou se o pai era envolvido ou não com os traficantes atravessadores) nos conduz à percepção da atualidade pelo caminho interior de nossas lembranças e sentimentos mais íntimos, como um inelutável visível que nos faz fechar os olhos para ver.

Enquanto o mar Mediterrâneo se transforma num grande cemitério ao redor do mundo desenvolvido, na França os partidários do Front National gritam em coro “Estamos em casa” depois do discurso no qual a líder da extrema direita Marina Le Pen pede o fechamento das fronteiras, fazendo cair vergonhosamente o véu da falência da humanidade moderna que esqueceu que é uma só e que seus filhos sempre migraram e migrarão, sobretudo num mundo onde produtos comerciais circulam cada vez mais livremente. A Odisseia de Homero reflete, de certa forma, questões sempre atuais da migração, como diz o fotógrafo Michaël Duperrin, que passou os últimos dez anos registrando os suposto caminhos de Ulisses, pois evoca noções como exílio, identidade e a relação com o mundo dos outros : “A [redação da] Odisseia corresponde a um período de crise social na Grécia Antiga, quando muitos cidadãos emigram para o Sul da Itália.” lembra Duperrin para a revista Réponses Photo. No final, a epopeia de Ulisses é mais um conto como tantas histórias que nos lembram que somos todos de fora, em busca de um lugar onde dignidade e contentamento sejam possíveis.