Velho Rabino

Velho Rabino

Nos últimos anos, observa-se, em quantidades crescentes, em muitos discursos orais ou escritos, a presença de diversos tipos de equívocos que, lato sensu, podemos denominar de “escorregões”. Não nos referimos a meros erros de gramática ou de semântica — até porque isso não seria o caso em declarações de muitos desses autores —, mas a sinais de outro tipo de fenômeno, conforme tentamos explicar a seguir.

A motivação para tratar do tema justifica-se porque o fenômeno incomoda. Não parece ser, e de fato não é, por acaso. Um primeiro exemplo seria do tipo mais oral. Uma frase, com variações, tem-se generalizado nos mais variados ambientes:

“Não tenho nada contra os judeus. Tenho até muitos amigos entre eles.”

Quando esse chavão aparece no início ou no meio de uma conversa, traz sempre preocupação. O que virá depois? Como realmente se posicionam os que fazem essas declarações? O que há por trás? Neste exemplo, não se trata propriamente de um equívoco, mas da quase certa contradição entre o que se diz e o que realmente se pensa.

Freud, em O chiste e sua relação com o inconsciente, ao analisar o subentendido nos discursos, aponta que o termo chiste, como o utiliza, não tem apenas o sentido jocoso de piada, podendo trazer implicitamente outros significados. Chistes podem, por exemplo, ser o ato falho de escamotear a ausência de referências relevantes ao tema tratado ou a substituição de uma palavra pertinente por outra semelhante em aparência, mas de sentido diverso. Enfim, o chiste seria a liberação de ideias reprimidas, ou tabus, que escapam da censura psíquica e vêm à tona de forma socialmente aceitável.

As declarações políticas, ideológicas e culturais de alguns intelectuais, hoje em dia, em relação à questão judaica — e, principalmente, ao antissemitismo — parecem eivadas desses chistes. Surgem, em outros casos, pela criação de termos ou expressões não usuais, que trazem dificuldade para compreender o que está por trás desses neologismos.

Para ilustrar o que se quer dizer, deparamo-nos com a expressão “Sionismo Cristão”. Numa busca ampla para entender seu significado, percebemos que pretende se referir a um suposto complô da extrema-direita evangélica cristã americana, que apoiaria o Estado de Israel como símbolo ideológico de dominação do mundo com base em seus ideais. Se a intenção era informar sobre o movimento liderado pelo extremista Russel Vought, o termo que este usa é “Nacionalismo Cristão”. A troca de Nacionalismo por Sionismo pode não ser por acaso e revela o preconceito embutido.

Além disso, fatos históricos são sistematicamente distorcidos. Um exemplo claro está nas revisitações às vítimas da ditadura militar brasileira, nos anos de repressão profunda. Em relatos sobre essas vítimas, há os que omitem, por exemplo, a figura do judeu Wladimir Herzog, morto pela ditadura com enorme repercussão. Seu assassinato, na opinião de muitos, marcou uma virada na situação política do regime e tornou-se um acontecimento histórico marcante. Lembre-se o gigantesco Ato Ecumênico concelebrado por Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor protestante James Wright. A ditadura declarou que Herzog havia se suicidado. A Chevra Kadisha (comissão encarregada das cerimônias fúnebres nos cemitérios judaicos), liderada pelo rabino Sobel, contestou: afirmou que ele havia sido assassinado e, portanto, não seria enterrado no espaço reservado aos suicidas, junto ao muro do cemitério.

Ainda, quando se cita o assassinato de várias pessoas pela ditadura no Massacre da Granja de São Bento (1973 – Paulista, Pernambuco), frequentemente se esquece de mencionar Pauline Philipe Reichstul, ex-companheira do importante autor marxista Ladislau Dowbor, judia de nascença, denunciada pelo Cabo Anselmo e morta. Parece haver uma intenção não declarada de apagar os judeus das lutas e da história do Brasil.

Outro ponto marcante que não pode ser deixado de lado é a confusão — também com clara intencionalidade — entre Estado e Governo de Israel. Muitas vezes, ao se referirem ao avanço da extrema-direita no cenário mundial, isso está presente. Ao afirmarem que existe uma “Conspiração Mundial da Direita”, ela é sistematicamente relacionada com o Estado de Israel. O estranho é que, em relação a outros países, se nomeia o líder e não a nação: por exemplo, fala-se em Orbán, Le Pen, Salvini e Bolsonaro. Por que não se faz o mesmo e se refere ao líder Netanyahu? O correto não seria afirmar que a “conspiração” é relacionada ao governo de Israel?

Ora, quando estávamos sob a ditadura militar, dizia-se que policiais brasileiros foram ao Chile ensinar ou praticar torturas em prisioneiros de esquerda. Como deveria ser descrito o fato? Que o governo ditatorial do Brasil enviou torturadores ao Chile, ou que o Brasil, como nação, o fez?

Uma teoria da conspiração tem sido difundida. A associação norte-americana Heritage Foundation lançou o Projeto 2025 (Project 2025), fundamental para a eleição de Trump e a ascensão da extrema-direita nos Estados Unidos. Trata-se de um plano de transição presidencial (Presidential Transition Project) com várias propostas conservadoras para remodelar o governo norte-americano. Associado a isso, a Heritagedesenvolve o chamado “Plano Esther”, destinado a combater movimentos de direitos palestinos e a apoiar — legal, política e financeiramente — grupos alinhados com posições conservadoras. Muitos analistas consideram essa ação um instrumento de Trump para enfrentar a resistência anticolonial e consolidar um bloco econômico sob seu domínio.

Sendo isso verdade, o problema é associar esse movimento ao sionismo mundial e imaginar um complô judaico contra a soberania de outros países.

Mais grave ainda é colocar no centro da discussão a ideia de que os judeus, e suas posses, seriam responsáveis pela orientação do movimento imperialista e opressor do Terceiro Mundo — sem qualquer prova que dê materialidade a essa teoria.

O “Plano Esther” tem sido propagado, inclusive no Brasil, por intelectuais que o apresentam como instrumento de dominação e quebra da soberania nacional, concebido pelo governo americano e supostamente influenciado por “poderosos grupos judaicos”.

Daí reforça-se um movimento contra o sionismo contemporâneo — um erro imperdoável, mas que vem sendo reiterado.

Há menções explícitas a uma imaginada “convergência entre o lobby sionista, a direita cristã e os think tanksconservadores” — uma espécie de tríade do mal. Nesse contexto, também se fala em “apoio a Israel como eixo teológico e geopolítico”. Neste ponto, não se pode deixar de lembrar o infame Protocolo dos Sábios de Sião e sua falsa descrição de uma “conspiração judaica” elaborada pelo Kahal, o suposto “governo oculto judaico”.

Está sendo construído um novo discurso, que associa o imperialismo americano e o sionismo como detentores do poder mundial e opressores dos povos menos favorecidos — um grande perigo. Essa narrativa fundamenta movimentos que questionam a legitimidade da existência do Estado de Israel.

Nesse contexto, o Estado de Israel é visto como um fator perigosíssimo, como se sua mera existência fortalecesse a dominação dos poderosos e a desestruturação dos mais vulneráveis.

Com esse raciocínio, combate-se o sionismo e, sem disfarce, os judeus em geral — prova cabal de antissemitismo e de racismo revelado. Nada é por acaso. Afirmações que parecem inocentes são sistematicamente feitas e repetidas, como se fossem brincadeiras inofensivas.

Têm consequência — e muita.