João Humberto Martorelli

Av. Conde da Boa Vista - anos 50/60.

Av. Conde da Boa Vista – anos 50/60.

Recife começava na confluência da Avenida Conde da Boa Vista com a Avenida 4 de Outubro, onde havia uma guarita elevada para o guarda de trânsito, de um lado o Colégio Americano Batista, um Posto Texaco, ainda existe Posto Texaco? Passavam carrocinhas de sorvete Xaxá e Daqui. Foi nessa confluência que o militar armado nos parou, a meu pai e toda a minha família, no dia do golpe militar, quando saíamos para o refúgio de veraneio, férias intempestivas, forçadas pela interrupção das atividades normais, e também porque meu pai temia retaliações por ser simpatizante, não militante, da esquerda, naquela época, ser de esquerda era sério, exigia compromissos, ideais libertários, seriedade no trato da coisa pública, o fato é que o soldado ordenou parar o carro e espiou desconfiado pela janela, era uma caça às bruxas, mas nós éramos uma família perfeita, cinco anjinhos no carro, minha mãe de coque aprisionado em laquê, e meu pai, meu pai tinha cara de homem sério de direita, passamos, enfim. O curioso é que o veraneio era em Boa Viagem, na altura do (argh! desculpem) atual Parque Dona Lindu, uma distância enorme na época, verdadeira viagem, mas era um refúgio para ficarmos afastados do epicentro dos acontecimentos da área central da cidade, onde morávamos, na Avenida 4 de Outubro. Chego, assim, ao ponto principal: essa Avenida 4 de Outubro era o prolongamento da Av. Conde da Boa Vista, vindo eu a descobrir mais tarde que o Conde da Boa Vista morrera no dia 4 de Outubro. Vê quanta poesia? E quando, depois disso, encontrei os versos de Bandeira, compreendi que tivéramos as mesmas vivências da cidade, embora ele, por óbvio, poeta maior, tenha vaticinado na letra o sentimento de perda que vim a sentir quando descobri, agora bem depois, que a 4 de Outubro passara a denominar-se Avenida Governador Carlos de Lima Cavalcanti. Pois não são de todos os tempos de Recife os tais versos? Ei-los: “Rua da União…Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância. Rua do Sol (tenho medo que hoje se chame de Dr. Fulano de Tal). Atrás de casa ficava a Rua da Saudade … onde se ia fumar escondido. Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora … onde se ia pescar escondido. Capiberibe – Capibaribe (…) Um dia eu vi uma moça nuinha no banho, fiquei parado o coração batendo, ela se riu, foi o meu primeiro alumbramento”. Tanto perdemos, eu ficando a pensar, essa poesia que passeava pelas ruas de Recife, a mística da guarita elevada, que admirávamos como a um monumento, a confluência, Boa Viagem um refúgio, tudo isso, e agora apenas a teia de concreto inclinando-se sobre o mar e sobre as ruas, algumas ainda de nomes bonitos, todas, porém, apinhadas de carros, a cidade desmemoriada. Preciso urgente de uma cadeira na calçada de onde possa espiar, não as moças no banho, que bem queria, mas a memória cândida, imortal, de Recife.