Depois de alguns minutos de silêncio constrangedor no elevador, sem olhar para o lado, minha vizinha perguntou se eu era católico. Respondi que não e ela insistiu no interrogatório: “Qual é a sua religião”. Não tenho religião, respondi lacônico. A esta altura a vizinha começava a ficar assustada. “Assim, tipo, ateu?”, questionou agora me olhando de frente. Me senti um criminoso diante da vizinha inquisitória, mas confirmei: “É, sou ateu. É muito grave isso?”, perguntei. Ela ficou desconcertada mas terminou a conversa com um meio elogio. “Não, é que o senhor parece tão gentil, educado e generoso que eu ….”. O elevador parou no térreo, gentilmente dei passagem a ela, mas desferi o golpe final: “Sabe, acho que é porque sou ateu”.
Não sei por que disse aquilo, mas agora tenho motivos para acreditar na minha afirmação. Recente pesquisa da Universidade de Chicago concluiu que as crianças criadas em ambientes religiosos são menos propensas a ser generosas que aquelas que não tiveram a mesma formação. E mais, que existiria uma correlação inversa entre o altruísmo e a educação religiosa. O coordenador do estudo, o neurocientista e psicólogo Jean Decety, afirmou que pessoas menos religiosas são “notavelmente mais generosos” e têm uma tendência mais espontânea a ajudar o próximo que aqueles que receberam orientação religiosa em suas famílias. Ou, como disse o pesquisador, as crianças “mais altruístas vêm de famílias ateias e não religiosas”.
Menos surpreendente é o fato das pessoas com formação religiosa terem uma maior tendência à intolerância que os ateus, o que decorre da própria severidade no julgamento e no relacionamento com a diferença. O estudo mostrou que as crianças formadas em ambientes religiosos tendem a ser menos tolerantes e mais rígidas na condenação de comportamentos que considere inadequados, segundo a sua doutrina; o que se acentua pelo seu julgamento rigoroso e dogmático em relação às atitudes e comportamentos dos não religiosos.
O ateu pode ter também valores e princípios éticos, nem sempre diferentes dos religiosos, mas baseados em conceitos universais e laicos que falam igualmente de generosidade, tolerância, compaixão e gentileza. Aqueles ateus que incorporam estes sentimentos e princípios tendem a pratica-los sem qualquer expectativa de retribuição (nem na terra nem num inexistente paraíso) contando apenas com a simples satisfação pessoal pelo seu gesto e pelos seus eventuais resultados na sociedade e nas outras pessoas.
Professor Sérgio,
Como o amigo se confessa ateu e pelo que conheço é uma pessoa educada, generosa, tolerante, gentil, o que muito lhe satisfaz em sê-lo, e a nós também, seus amigos, bem que poderia ter finalizado o colóquio com a sua vizinha, se espelhando na conhecida expressão: “-vizinha, sou ateu graças a Deus.”
Excelente!
Ajuda a enfrentar a constrangedora dificuldade de ser ateu num mundo dominado por religiosos hipócritas!
Não podia ser diferente, graças a Deus você é ateu. Percebi e percebo isso até hoje. Quanto mais “carola”, mais rígidas são as pessoas que se acham no direito de julgar dentro de uma moral que vem não se sabe de onde. Existe uma “raça” chamada freira, que, com raras exceções, eram as criaturas mais temidas em colégios. Minha mãe tinha traumas, sofreu muito em internatos. Como não suporto generalizar, deixo claro que conheço pessoas muito generosas que por acaso são religiosas, mas treata-se de uma minoria no meu círculo de amigos e conhecidos. Muito bom seu artigo.
Ih, Sérgio!Permita mexer o meu angu, não de fato acontecido recentemente e sim de época pretérita. Foi o seguinte: estudava no Colégio Nóbrega, lá pelos anos sessenta do milênio passado. Mais precisamente no 1º ano do científico quando fui chamado à reitoria. Que tinha eu provocado? Alguma briga? Subira numa das mangueiras ou mesmo atirara uma manga verde para derrubar uma manga madura, já salivando de satisfação? Meu boletim estava com prenúncio de repeteco de ano? Qual o quê! O padre foi logo sem arrodeios: “O senhor faltou a aula-missa de religião do sábado passado e não justificou.” -É padre, fui fazer a feira com minha mãe, lá no largo de Santo Amaro. “-Então o senhor traga uma justificativa por escrito.” Padre, eu não fui ao cinema de arte do São Luiz, fui à feira, e se o senhor não aceita a minha palavra eu vou sair do Colégio. Saí! Quem quiser confirmar essa historinha pode perguntar a dona Adelma com seus 101 anos e ela confirmará que me deu apoio irrestrito. Viva mamãe,viva!
Sérgio, comungo do seu ateísmo.
Meu caro Sérgio Ateu: me deliciei lendo o relato desse flash do cotidiano e sobretudo as reflexões certeiras que você desfia a partir do relato. Já me vi em situação semelhante muitas vezes. Invariavelmente as pessoas se surpreendem, quando não se chocam. Como você pode ser tão atencioso, amável, solidário etc, se é ateu? Esse preconceito, quando não intolerância, está profundamente enraizado na história de quase todo tipo de crença, religiosa ou política. Foi entre os comunistas, até porque convivi muito com eles, que mais esbarrei na intolerância. Por isso não tenho dúvida de que confundem ideologia política com religião secular. Também concordo com você num outro ponto, Sérgio, que tem a ver com o que acabo de observar: os ateus tendem a ser muito mais tolerantes.
Estou terminando um Curso de Mediação na resolução de conflitos humanos, então, não posso , e, não devo julgar. Mas, pelo pouco que tenho aprendido e apreendido, está certo o Buda quando diz: “O que importa, é o coração”. Somos “salvos”, por nós mesmos, pelo coração. Generoso. Sábio. Sem conceito nem pre-conceitos, coração antes de tudo, humano, igual aos outros corações, independentemente de ser isso, ou aquilo. Crente, ou descrente. No “frigir dos ovos”, o que mais importa, do útero materno ao caixão, é podermos responder, antes de tudo, a nós mesmos: Que tipo de pessoa eu fui? Como me comportei com “o outro”? Em que contribuí? isso basta.
Sérgio, tenho passado por experiências semelhantes, ao me declarar ateu. A palavra tem uma carga pejorativa tão grande que assusta as pessoas, desde um intelectual religioso até um simples sorveteiro, como foi um dos meus casos.
Se não quiser mais assustar ninguém, diga que é materialista. Ou melhor, racionalista. Dá no mesmo e não escandaliza.
Sobre a possibilidade de ateus terem um comportamento ético, já abordei o problema nesta revista. Se ainda não leu, leia o meu artigo “Fundamentos da Ética”, um dos “artigos filosóficos” que publiquei aqui.
E meus cumprimentos pela crônica.
Tive experiências parecidas, mas bem poucas, felizmente. Mas tenho uma historinha pior, nessa linha: outro dia, na papelaria, vi uma senhora que voltava de uma viagem contando que tinha trazido não sei o que de contrabando, e explicou o quanto ficou nervosa na hora de passar a mala na alfandega. E terminou: “Felizmente não abriram a mala, deus me ajudou.”
Ninguém achou nada demais na história. Todos ao redor eram crentes, pois os donos da papelaria são uma família de crentes. Será que eles estavam pensando no ditado “deus ajuda a quem madruga”? O pior que nem isso é verdade, se vocês observarem bem a realidade dos fatos e dados.
Nem precisa atestar cientificamente.
O mundo está dando provas cotidianas que religião e generosidade não andam muito juntas.
E você, meu querido irmão, é o melhor dos exemplos.
Querida Luciana acabei de lê o artigo do Sérgio e me êxtasim conta a sua ser dado interna de um ser maravilhoso que conheço deste muito e com o qual concordo pois o fanatismo leva o ser humano a graves consequências. isto é uma conclusão particular minha.