João Rego

Slaves - Robert Riggs [American Painter and Printmaker, 1896-1970].

Slaves – Robert Riggs [American Painter and Printmaker, 1896-1970].

Esta expressão encontrada na Bíblia sempre me impressionou pela força dramática que ela carrega. Quase sempre transmite a fúria de um Deus vingativo, poderoso e justo contra o homem que cometeu um crime hediondo.

Mas nem sempre quem sofre com esta intensidade são criminosos ou culpados de algum crime. Penso nos escravos, homens livres na África, capturados e trazidos em condições terríveis nos porões dos navios negreiros. A “indústria” da escravidão marcou a ferro e fogo a alma da nação brasileira, deixando cicatrizes evidentes na exclusão social, nos trabalhos menos qualificados e nos aglomerados urbanos – as favelas e áreas de periferia das grandes cidades. São quase todos quase-negros, ou quase-brancos, como nos ilustrou Caetano Veloso no “O Haiti é aqui”.

O aparelho de Estado é formado por evidente separação de uma dominante elite branca em detrimento dos direitos e valores da grande maioria negra – um negro no Supremo Tribunal Federal é um fato exótico, um destaque histórico. Estes aparelhos ideológicos de Estado, em sua enorme complexidade, vêm atuando com essa lógica excludente e parcial, onde até pouco tempo a justiça só prendia negros e pobres – estes, predominantemente negros.

A força de trabalho escravo forjou, durante séculos, o desenvolvimento econômico da Brasil. A Nação brasileira nasce sob a cadência do estalo cruel do chicote no lombo do negro. Ouvimos, enquanto nos constituíamos como nação, o “choro e o ranger de dentes” dos negros nos porões.

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!  (Navios Negreiros – Castro Alves)

No Brasil de hoje, com três décadas de um regime democrático, ainda em importante processo de consolidação, eis que nos deparamos com uma nova geração de juízes, promotores e delegados decididos a fazer história. Refiro-me a Operação Lava Jato, deflagrada sob a supervisão do juiz Sérgio Moro que, entrando na sua 24º fase, denominada de Aletheia, tirou de casa o ex-presidente Lula e seus familiares, supostamente envolvidos em falcatruas, para deporem. Pode-se contar vários empresários poderosos e desonestos já condenado a mais de dez anos de prisão em regime fechado.

Não, a corrupção não foi inventada pelo PT, mas o que foi urdido pelos seus principais dirigentes foi de uma dimensão tal que seria inevitável estes desfechos. O certo é que o Brasil não será mais o mesmo após a conclusão dessas investigações – que estão ainda no começo. A Lava Jato e suas consequências estão nos levando a acreditar que estamos experimentando um vigoroso salto de qualidade em nossa história, onde as instituições estão, finalmente, colidindo de frente com uma elite poderosa, dissimulada, corrupta e corruptora – herdeira histórica de um comportamento de dominação política arcaico, injusto e excludente.

Neste novo país, que infelizmente a névoa de crise política atual nos impede de perceber, já é possível ver delineando-se no horizonte uma nação, finalmente, fincando as estacas da consolidação da democracia; uma nação na qual a impunidade será banida, para sempre, do nosso dicionário e a justiça prevalecerá sobre todos.

Hoje, cinco séculos depois, escutamos “o choro e o ranger de dentes” de empresários, agentes públicos e políticos desonestos nas prisões. Estes gemidos nos lembrarão, como um signo, as mudanças do país. A nação, mesmo atingida pela crise, navegando em águas turbulentas, segue seu rumo, cavando sulcos na história, construindo seu destino e nele estamos todos nós, os que nos antecederam e os que virão depois. Tempo haverá em que o que estamos passando será apenas mais um capítulo deste longo percurso – triste, doloroso, pobre e muitas vezes frustrantes – necessário para nos impormos como nação democrática, sólida e autônoma.