O asco que importantes setores da classe média externaram diante do espetáculo patético de grande parte dos deputados, quando na declaração de seu voto, contra ou a favor do impeachment, revela-se como um sintoma que encobre um sério descolamento desse segmento, os dos mais abastados, do Brasil real – um país ainda severamente marcado pelas desigualdades sociais.
Como é possível que em momento tão delicado da nação, uma grave crise econômica e paralisação política se vote daquela forma, invocando a família, Deus e outros adereços mais?
Cassaram a concordância verbal!!! Mataram a gramática!
Lembro-me de um que citou as microrregiões geográficas que o elegeu, lá no interior do Amazonas: a BR 75 que vai do trecho tal ao trecho qual. Outro, infelizmente daqui de Pernambuco, carregou seu filho para votar em seu lugar, revelando um traço cultural que forja a cultura política de região, desde idos tempos: o feudalismo político. Prática secular da elite política que insiste em se reproduzir a cada eleição, mais fortemente nos setores mais conservadores. Embora, alguns setores da esquerda não fiquem por baixo, com seus mitos de pés de barro; seu populismo tosco e traços de um marxismo anacrônico, mal interpretado e mal aplicado, nutrindo, com o mesmo zelo dos coronéis, suas reservas de mercado das consciências.
Os currais eleitorais, expressão antiga que só fome, unidade celular desse feudalismo político, onde os votos são passados de pai para filho, como um pedaço de terra, ou valioso bem que se coloca em testamento antes de morrer, a tudo resistem, se reproduzindo impermeáveis ao tempo de redes sociais e suas modernas tecnologias de comunicação.
Com o inchamento das grandes regiões metropolitanas, fruto de intensos fluxos migratórios do campo para a cidade formando nossas periferias, os currais, antes demarcado por áreas geográficas no interior se transmutam para dentro das almas dos desassistidos. Estes, carregam agora, como uma maldição, para onde se desloquem a submissão política que moldam suas vidas e, em muitos casos, a de seus descendentes.
Como o gado que, além das inúmeras cercas que os impedem à mobilidade social, são objeto de um poderoso e infernal círculo vicioso determinando sua existência: escola pública de baixíssima qualidade, subemprego, desemprego, violência entre os mais jovens, etc. Semelhante a marca de ferro quente no couro do gado, carregam em seus espíritos a indelével marca da alienação política, tornando-os alvo preferido dos políticos e marqueteiros, ávidos pela compra do voto barato no mercado eleitoral.
Enquanto isso na Sala de Justiça…. uma elite econômica investe em seus projetos – legítimos, tenho que admitir – de ampliar seu patrimônio, gozar com o maravilhoso e célere universo do consumo, regando seus herdeiros com MBAs e cursos no exterior para comandarem os destinos da nação, que seja em cargos públicos, por meio da absurda indústria dos concursos públicos ( precisamos mesmo de um Estado desse tamanho?), que seja no comando dos setores produtivos. Tudo estaria perfeito, exceto pelo fato de que fazem isto de costas para este Brasil periférico. É deste descolamento que falo.
A política, quase sempre delegada a poucos, não é item importante de suas agendas, exceto para reproduzirem seus privilégios e ampliarem suas riquezas. Para muitos, votar é uma obrigação cívica, um feriado a mais, para depois se reunir com a família e amigos, que ninguém é de ferro.
Aqui deve-se registrar o importante papel do PT como o primeiro partido, de nossa recente fase democrática, que deu espaço e voz para os setores “esquecidos” da população – nossos cidadãos de segunda categoria. Mas, tragicamente, encerra um ciclo com parte da sua liderança presa e envolvida com a corrupção, traindo sua missão original. As imagens de Lula com Paulo Maluf e Jáder Barbalho, há algumas eleições atrás, balizavam antecipadamente o desastre que descambaria na crise da Lava-Jato e o impeachment de Dilma Rousseff.
Não viu quem não quis, ou não pode ver.
Se há um valioso ganho com essa crise da Lava-Jato foi que, obrigatoriamente, a política se impôs em nossas vidas. Impeachment, STF, Delação premiada, Primeira Instância, Celso de Melo, Teori Zakaski (ô ´nominho` complicado!), Oderbrecht, Eduardo Cunha, corrupção institucionalizada, são termos que perpassam nosso cotidiano transformando todo brasileiro em juiz. De técnico de futebol para juiz, tenho que admitir, é um salto de qualidade relevante. Trocar o Domingão do Faustão pela votação do impeachment, outro ganho social.
Esse estranhamento, denunciado incomodamente por muitos, reação ao triste espetáculo na votação do impeachment na Câmara do Deputados, mostra que, apesar de significativos avanços na economia e da modernização da classe média, somos ainda um país do baixo clero -, expressão depreciativa usada para isolar aqueles deputados eleitos pelos grotões da sociedade. Um deputado de formação frágil, despreparado pois vindo dos grotões, não representa seus eleitores, trazem apenas condensado em si mesmo a miséria social em que viveu, o que é importante para a democracia, mas insuficiente para consolidá-la, uma vez que estes, assim como seus eleitores, são massa de manobra dos chefes políticos ricos e poderosos.
Vejo, dentre várias ações necessárias para rompermos as estruturas arcaicas de dominação política, a reforma política como a mais importante, começando pelo fim do voto obrigatório e a discussão do voto distrital.
Talvez por aí possamos derrubar alguns currais.
Recife, 22 de abril de 2016.
Revista Será?
www.revistasera.info
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João,
Impecável na forma e no conteúdo, você disse tudo e muito bem dito. Sequer um comentarista inspirado conseguiria agregar elementos a esse extraordinário esforço de síntese. Este domingo pode ter marcado a tal sonhada virada que esperamos na esquina há meio século. Será?
Abraço,
FD
Como sempre. Brilhante!
Retrato fiel e eloquente, em três por quatro, da sociedade brasileira.
Muito bom, João Rego. E caiu bem para a data de hoje. 22 de abril, dia em que o Brasil completa 517 anos de seu descobrimento(?). E como disse José do Patrocínio: não interessa o PATRIotismo e sim PRATIotismo.
João, deveras espantoso o espetáculo oratório do último domingo. Mais espantoso ainda, a Câmara fez a coisa certa. Atendeu a voz das ruas e prestou um serviço ao Brasil. Até o execrável Cunha mereceu seu salário naquele dia: passou 12 horas sentado na cadeira, conduzindo a seção com um pulso firme e um sangue frio que, para ser justo, eu tenho de reconhecer.
Um obstáculo superado. Agora é a vez do Senado. Há gente boa, lá, seduzida pelo canto de sereia das eleições antecipadas.Calculando mal suas chances e pior ainda as do Brasil. Se há um ganho nessa crise, diz você muito bem, é que a política entrou inelutavelmente em nossas vidas. Assim sendo, vamos repetir com o Senado a pressão que deu certo sobre a Câmara e fazer ver aos senhores senadores o óbvio ululante: a saída é o impeachment. Parabéns e um abraço,
LA
É isso aí, Luiz Alfredo, você fala até o que ninguém ousa pensar. Mas não fosse a mão de ferro e o sangue polar de nosso canalha mais querido, as chicanas ensaiadas por Orlando Silva – não o antológico, mas o da tapioca de dezenove reais, paga com cartão corporativo- poderiam ter melado o processo. O cara tem que ter colhão pra admitir isso e você tem. Obrigado.
A propósito, João, onde anda um ilustre colaborador nosso que mora no Texas e que dias atrás fez das credenciais acadêmicas um biombo para ver de lá o que não víamos do Brasil? Como era o nome dele mesmo? É hora de ele voltar. Lembra muito Mangabeira Unger, espero que sem aquele sotaque no verbo – no texto ele já tem todo. Um que fazia a apologia do palavrão, rapaz. O que será que ele acha agora do cuspe?
Abs,
FD
Parabéns pelo brilhantismo de ideias. Não podemos nos furtar de pensarmos num futuro com pessoas mais politizadas e só conseguiremos isto quando tivermos governantes que invistam na escola na educação. infelizmente não conseguiremos isto enquanto um professor ganhar 1/4 do que ganha um policial, porque pensando assim construiremos mais cadeias que escolas. É ultrajante pensarmos que em pleno século XXl ainda falarmos em saneamento básico. Mas acredito que conseguiremos superar todos estes momentos tristes.
Também concordo inteiramente com Luiz Alfredo Raposo. Copio e colo o que postei em 17 de abril, 15:35, a sessão apenas começando:
“Confissão: o Eduardo Cunha é mesmo meu bandido preferido. Um rigor impressionante: passou o tempo e ele simplesmente desligou o microfone do homem do PR, e chamou o seguinte, do PSD. E fica totalmente frio, no rigor do regimento, com as xingações contra ele nos momentos de comício da Câmara. Lembra um parlamentar de outra era que era assim totalmente disciplinado, o velho Antonio Carlos Magalhães.”
Seria ainda mais enfática ao fim da sessão, algo depois de 11:00 da noite. Noto, contudo, que me desculpe L.A Raposo de cortar o barato e com perdão da linguagem politicamente incorreta de Fernando Dourado, “no need of balls the size of planet Saturno for that”: não só foi meu post de comentário da sessão que teve o maior apoio, como houve muita mulher que expressou a mesmíssima opinião. Houve até post dizendo que, não fosse Cunha estar envolvido em processos, seria a figura ideal para Presidente da República.
Em tempo: eu gostei do artigo de João Rego, já tinha clicado lá em cima em “like” na mesma sexta-feira.
Belo artigo! Excelente reflexão sobre o verso e o anverso do anacrónico e perverso sistema político brasileiro.
Obrigada pelo texto coerente e sem meias palavras. Visão absolutamente clara do nosso pobre Brasil, cuja democracia existe, mas ainda é muito frágil e fragmentada.
Chorei ao ler seu texto, pq fico angustiada de ver como somos pequenos diante de tanto que precisa ser feito, mas sem pessoas dispostas a fazerem política, ficamos com o que temos aí… Apenas discussões infinitas e infundadas e muitos idiotas é poucos políticos.
Parabéns, caro João Rêgo, ótimo texto, você disse tudo com muita propriedade. A leitura do seu artigo nos deixa ainda mais indignados.