Luiz Alfredo Raposo
Economista. Bancário aposentado

Don Quixote and Sancho Panza painting - Gely Korzhev.

Don Quixote and Sancho Panza painting – Gely Korzhev.

A transformação do ministério da Cultura em secretaria deu origem a um quiproquó curioso, brasileiramente surreal. Ela foi parte de um programa de redução do número de ministérios que respondia a uma grita insistente na sociedade. Sociedade que se escandalizou com os 39 ministérios da primeira gestão Dilma. O clamor se fizera ouvido de novo, na semana anterior ao afastamento da presidente, quando o noticiário deu conta de um suposto recuo de Temer, ante a ideia. E começaram as críticas: “capitulou à velha política”, “vai reproduzir o modelo petista de loteamento da máquina entre duas dezenas de siglas partidárias” etc. No fim, fez conforme a encomenda e, depois, apanhou e apanhou por ter feito. Tanto que desfez…

O imbróglio impõe uma reflexão. Na pletora de ministérios, incomodava a população o que parecia um caso de desperdício, de farra com dinheiro público. E esta continua sendo a justificativa mais popular para o enxugamento. Economia de custos. De gastos com gabinetes, assessores, mordomias… A razão principal, a razão decisiva, porém, é outra, de ordem administrativa. Com um ministério enxuto, criam-se condições para um governo mais eficiente, capaz de produzir ao mesmo custo mais e melhores serviços públicos. Ou seja, a farra está menos no aumento de despesas do que na perda de benefícios por real gasto.

Essa ideia da relação direta entre enxugamento e eficiência burocrática é de senso comum, e antiga na gestão de negócios. Qualquer analista bancário, qualquer executivo experiente começa a valorar uma empresa pela qualidade da governança. Por sua capacidade de reagir bem e prontamente às circunstâncias. E vê no organograma leve, enxuto o alicerce da governança. Para analisar este ponto, criou-se a noção de “alcance de controle”(AC) (o span of control da literatura de língua inglesa). Noção que indica o número de chefias diretamente subordinadas a uma dada chefia superior. Em termos gráficos, o número de “caixinhas” que se ligam, operacionalmente, a uma “caixinha” logo acima. Com base em pesquisas empíricas (essa mania em que os anglo-saxôes são inexcedíveis), na fase pré-Informática admitia-se um AC máximo em torno de sete. Ou seja, acreditava-se que um chefe de certo nível não conseguiria acompanhar convenientemente o trabalho gerencial de mais do que sete chefes do escalão logo abaixo. Com o advento da Informática, o gerenciamento ganhou produtividade, e, hoje, a literatura fala num AC máximo de entre 10 e 12. Claro que os números são aproximações grosseiras, já que a demanda de controle depende de vários fatores, notadamente, o volume de projetos sob os cuidados das chefias subordinadas. E a oferta, da “embocadura” do controlador.

Dito isso, olhe, agora, para o topo do organograma da “empresa” governo federal. Na linha operacional, um presidente e 23 (ou 24) ministros. Pesado demais! Um AC que é o dobro do razoável, à luz da teoria. O que significa que o presidente, na condição de chefe de governo, tem ante si uma tarefa impossível.  Mesmo depois do enxugamento, mesmo que ele seja um ás da gestão. Impossível despachar com cada ministro na frequência adequada. Impossível entrar nos detalhes críticos dos projetos de cada pasta e fazer o mínimo necessário, que é mantê-los no rumo certo, imprimir-lhes as digitais presidenciais. Resulta dessa deficiência de controle um grau qualquer de “loteamento”, outro nome para a feudalização da estrutura de governo: o abandono de alguns ministérios, sobretudo os menores, a seus ministros. Possivelmente, aos interesses particulares dele, da corriola, da clientela. Ficaram folclóricos, nesses últimos cinco anos, os casos de alguns titulares de pequenas pastas que entraram e saíram sem ter despachado uma única vez com sua presidenta.  O sujeito conseguia um posto desses e um naco do orçamento e, a partir daí, passava a agir, não como ministro e, sim, como donatário. Sem ter de prestar contas, senão dos aspectos formais aos órgãos de controle. Interesse público que é bom podia bem ficar em último plano. Os assuntos culturais, tema de uma pasta pequena em termos financeiros, sempre estiveram expostos a esse risco e, parece, aqui e ali tropeçaram nele. Da ótica do interesse geral, não perderiam, portanto, nada com a incorporação a um ministério forte (e afim) como é o da Educação, com muito orçamento e muita “pauta”. Pelo contrário, ganhariam, continuando a ser olhados por um gerente, também ministro, só que com acesso mais fácil ao presidente. Com maior frequência de despachos com o chefe de governo, sem dúvida com maior poder de resolução e mais resistente a interesses particulares pouco republicanos.

Esta, a realidade. Uma questão de organograma. E agora, a “surrealidade”: a repercussão absolutamente desproporcional à mexida no organograma. O importante, o emergencial hoje no Brasil é a crise econômica, social e moral, essa obra magna petista. Os 11 milhões de pais e mães de família desempregados, com seguro desemprego vencido ou prestes a vencer. A inflação, que atingiu dois dígitos, e flagela a todos, empregados e desempregados. O Tesouro em situação pré-falimentar, fazendo um déficit primário de R$ 170 bilhões. A pandemia de corrupção que devastou as principais estatais brasileiras. Foi isso que levou a população às ruas, que a mantém atenta e inquieta nas redes sociais e decretou o fim de Dilma e do PT. Mas para a mídia, na semana em curso, nada merecedor de mais destaque do que as ruidosas reações à extinção do MinC. Um pesquisador estrangeiro que tenha desembarcado entre nós na última semana para estudar a “crise brasileira”, sua primeira impressão deve ter sido a de que o país vive, sim, uma séria crise… cultural.

Mas, ao esmiuçar melhor, ele terá decerto anotado alguns detalhes. Entre os líderes dos protestos estão alguns ídolos artísticos. E isso já lhe daria uma pergunta: o barulho de mídia reflete mais a importância do tema? Ou a notoriedade dos promotores?  Outro ponto impressionante, espantoso mesmo: se procurou, não descobriu qualquer vestígio de protesto desses ídolos contra as mazelas reais dos dias de hoje, que machucam e afligem a população do país. Desemprego, inflação, corrupção, quebradeira do Tesouro é como se nunca tivessem existido. Nos cartazes que eles exibem, nas declarações que dão, mais do que defender um ministério para a Cultura, o que fazem é denunciar um golpe que ninguém viu e um governo a que negam porque negam legitimidade. A primeira conclusão do estudioso deve ter sido a de que os “artistas” protestam contra a perda de status do MinC simplesmente porque se opõem ao governo. Fariam o mesmo com a gotinha contra a paralisia infantil, fosse Temer seu defensor.

Poderia o scholar querer testar a hipótese alternativa, de que os barões da Cultura apenas se revoltam contra o truncamento de uma trajetória brilhante. Um órgão de excelência abatido em pleno voo. E iria procurar, procurar, sem encontrar no histórico ministerial muita coisa que confirmasse essa excelência, esse brilhantismo todo na defesa de nossa cultura. Encontraria, sim, o episódio do Abaporu, joia da pintura modernista brasileira, obra de Tarsila do Amaral, que, em 1995, foi levado embora do Brasil por um colecionador argentino, em meio ao clamor nacional e à indiferença de um MinC já com dez aninhos. E está hoje pousado serenamente numa parede de museu em Buenos Aires.

Mas, e o modo petista de fazer Cultura? Matéria publicada hoje (19/05) no site de Veja (No Planalto, PT liberou apenas metade do Orçamento para a Cultura) constata a insignificância da verba: somados os 13 anos, R$ 36 bilhões em valores atualizados (só a despesa primária prevista no OGU do ano em curso é de R$ 1.196 bilhões. Sem falar na iminente revisão, que deverá acrescentar mais R$ 170 bilhões à autorização inicial). Até aí, nada de mais, os outros governos fizeram o mesmo. Os próximos farão o mesmo. Mas a matéria informa que as dotações ao setor têm estado entre os alvos preferenciais dos “contingenciamentos”, da rasoura dos cortadores de gastos petistas (apenas metade do orçamento foi liberada). Informa, ainda, que quase 50% dos gastos foram com atividades-meio, salários, gratificações, verbas previdenciárias etc. E, enfim, que, do restante, cerca de 40% (R$ 7,2 bilhões) destinaram-se a um único programa, o Fundo Setorial do Audiovisual.

E quem foram os beneficiários desse Fundo?, indagaria o brasilianista. O mais das vezes, gente graúda da classe artística. Produtores, atores, diretores teatrais, cantores famosos. A mesma turma que se põe à frente dos protestos atuais, na entrada da antiga sede do MEC, no Rio. Nas delegacias regionais do ministério.  Ou, podre de chic, no palco vermelho e dourado do Festival de Cannes. Eureka!, exclamaria ele com o ar de quem acabasse de descobrir uma espécie nova de borboleta amarela. Aí, a causa viva de tamanho fervor: a gratidão, o amor aos benfeitores!

E o gringo retornaria, satisfeito e um pouquinho enternecido com seu achado. E eu continuo aqui a cismar, e penso em Nelson Rodrigues. Se vivo fosse, ele já teria bradado numa confissão: “apontem-me uma só e escassa obra-prima inegável, cinematográfica, poética, literária, musical, viabilizada pelas leis de incentivo. Um Pagador de Promessas, um Morte e Vida Severina, um Menino de Engenho, uma Garota de Ipanema, umas Bachianas Brasileiras. Apontem e eu me tornarei um coroinha tonsurado das leis de incentivo”. Talvez ensinasse, mais sisudamente, que o mecenato cultural no passado (mecenato oficial, anterior ao “mercado”) funcionou, sim, nas artes plásticas. Na pintura, na escultura e na arquitetura. E, em menor escala, na música erudita. Todo menino de ginásio, aduziria ele, já leu em seu livro-texto de História Universal sobre o extraordinário florescimento das três artes irmãs na Renascença italiana, feliz acaso da combinação de uma safra de gênios artísticos com o apoio material da Igreja romana e dos príncipes-mercadores das cidades-estados. Florença, Veneza, Bolonha… Ou sobre a proteção dada pelas cortes europeias e pelas igrejas nacionais a seus mestres cameristas. Bach, Mozart, Haidyn.

Ah, dificilmente iria parar por aí aquele feroz eciano dos subúrbios do Rio. Decerto, por nada no mundo trocaria uma oportunidade dessas de se desdobrar em hipérboles e paradoxos. E talvez às leis de incentivo ele contrapropusesse como condição necessária ao desabrochar do gênio artístico a adversidade, o desamparo. O Dom Quixote, indagaria, não foi escrito numa cela de prisão? Os Lusíadas, concluídos num quartel em Goa? A Rosa do Povo Drummond não compôs, enquanto burocrata, calvo e timorato, no breu do Estado Novo? E por aí seguiria. E, como aconteceu muito em minha juventude, eu teria saído da leitura da crônica encantado com o autor e insatisfeito (ou melhor, indignado) com o teor. Sim, senhor, que imaginação e que desaforo! Propor para os artistas o mesmo que a crueldade de alguns faz com os pássaros engaiolados: racionar-lhes o alpiste, matá-los de fome para forçá-los a dar de si suas obras-primas…

Mas a crônica imaginária teria cumprido um papel, de orientar meu pensamento. De me levar a uma reflexão fria, racional sobre a linha de atuação de um órgão de apoio cultural em âmbito nacional.  E o episódio do Abaporu a sugere: se a verba é curta e sempre será; se, ao contrário do que se diz, a Viúva não é rica– o caso é mais de conservar do que de estimular a nova criação. O artista verdadeiro cria sob qualquer pretexto. Por ter a verba e por não tê-la. E acervo cultural, histórico ou artístico, bem conservado, se paga. Num país como a França, é a base da indústria mais florescente: o turismo. Mas tudo limpo e nos trinques. Nenhum turista daria o ar da graça em Versailles, para ver os cristais dos lustres quebrados, ou os muros sendo aos poucos demolidos por quem quer que precisasse de uma carradazinha  de rachão.

Ora, na semana em que o filme Aquarius, orçado em R$ 3,3 milhões e financiado com dinheiro público via renúncia fiscal (Lei Rouanet), era apresentado em Cannes, matéria de página inteira no Jornal do Commercio do Recife denunciava que um monumento histórico como o Forte de Pau Amarelo, no litoral norte de Pernambuco, se acha em ruinas, por absoluta falta de conservação. Li e desconfiei: esse é apenas um exemplo de como anda a conservação de nosso patrimônio cultural. As igrejas, os conventos, os fortes, o casario barroco. As obras de arte, os museus, os arquivos espalhados de norte a sul. As escolas de belas artes, os conservatórios musicais, as bandas de música municipais (esses conservatórios matutos). As manifestações artísticas, os cantos, as danças, as festas e folguedos populares. Os programas de intercâmbio museus-escolas. E os circos mambembes, meu Deus? Seus cogumelos de lona continuam a reproduzir-se por esses Brasis, ninguém sabe como, perpetuando o DNA dos avós. E o panorama todo me lembra um enorme armazém abandonado, repleto de mercadoria de primeira!

Enquanto isso, o poder público pensando numa hipotética produção… Se, como a mim parece, tal tem sido a linha de ação do MinC, afirmo, sem medo de errar, tratar-se de um equívoco histórico. Um problema mais sério, ainda, que o “enfeudamento”, embora talvez consequência deste. Mais sério porque, nas circunstâncias atuais, conservação e restauro não contam com o mercado. Nem, na escala necessária, com o mecenato privado. Se o Estado não acode, porque o dinheiro todo foi financiar empreendimentos e espetáculos do show business, adeus nosso rico patrimoniozinho. A hora da correção é agora, só falta alguém para enxergar. Alguém de suficiente calado…

E isso me leva de volta ao gringo que partiu. Pátria é uma intimidade, disse uma vez Ortega y Gasset. O estrangeiro, por mais que se aplique, por mais que se insinue, mal conseguirá chegar até a copa. Não vai nunca participar dos segredos que a intimidade supõe. E é por isso que o gringo voou, leu errado o tempo todo a reação dos ídolos protestadores. Não é crise cultural, não é abismo ideológico, não é velório de sigla defunta, não é gratidão, não é nada. É o simples medo de perder a boquinha do tal Fundo do Audiovisual. As luvas milionárias da Lei Rouanet. O dinheiro do filme, da peça teatral, do show musical… Um reforço em regra chocante para os cachês, a grana do patrocínio comercial, a receita de bilheteria nunca dispensada ao distinto público. Eles esbravejam porque suspeitam (iluminados, tomara, pelo dom da profecia) que, com MinC ou sem MinC, virá uma mudança de linha de ação (oxalá no rumo apontado), ruim para seus interesses pecuniários, embora salutar para o país. Caso isso aconteça, a firmeza será essencial. O governo já cedeu na questão do status, não vá agora ceder no programa. E desde já se prepare: não cedendo, o show vai continuar, eles vão seguir levantando suas plaquinhas. Até um dia cansarem.

Confesso que essa modalidade de patriotismo não me agrada. Prefiro o do povo simples. Genuíno, verde-amarelo, que enxerga o bem comum. O dos que, hoje, erguem cartazes é coisa manjada: um patriotismo de bolso, em causa própria. Em defesa de interesses. Manifestação de uma mentalidade que vem de longe. Do tempo das capitanias. Das funduras de um país que, observou certa vez com desgosto o cronista Rubem Braga, insiste uma elitezinha em manter chuvoso e hereditário… Mudam as caras, mas o grupinho persiste, sempre na lida! E, para mostrar que os reacionários somos nós e exercer seu peculiar patriotismo, o pessoal de hoje bota um manto majestoso de grandes gestos e grandes palavras. E sabe tecê-lo com uma habilidade encantadora. Donde a inapelável, curta e grossa conclusão: como essa gente é prendada! Que grandessíssimos artistas!!!

Poço da Panela (Recife), maio/2016