Marcus Alban (*)
Em uma de suas frases mais famosas, Mario Henrique Simonsen observou que “a inflação aleija, o câmbio mata”. Com isso ficava claro que não se podia brincar com o câmbio, e nem valer-se do mesmo para combater a inflação. E de fato, durante todo o período em que ele esteve à frente da Fazenda – anos 70 –, a inflação não deu trégua, mas a economia nunca parou de crescer.
Nos anos 80, porém, a inflação tornou-se um problema bem mais grave, gerando a década perdida dos mal sucedidos planos de congelamento e desindexação. Mas chegou-se aos anos 90, e neles, com o Plano Real, implantou-se, com sucesso, a desindexação da economia, com uma forte ancoragem cambial, assegurada por juros elevadíssimos.
Estabilizada a economia, era o momento de se retomar o crescimento, com um câmbio mais competitivo. Tal, entretanto, não foi o que se fez. Com economistas ortodoxos no poder, optou-se por seguir segurando simplesmente a inflação, com juros muito elevados. Em tese, buscava-se previsibilidade, com vistas à melhora das expectativas e à retomada do crescimento. As expectativas até melhoraram, mas o suposto crescimento não veio. Ao contrário, com juros altos e o câmbio sobrevalorizado, a economia, em letargia, iniciou a sua desindustrialização – ou, nos termos de Simonsen, a sua morte.
Nesse contexto, de verdadeiro paraíso para o sistema financeiro e seus rentistas, FHC se reelegeu, mas não fez seu sucessor. Chegou a vez de Lula com o PT e, para surpresa de todos, não se iniciou uma nova política. Ao contrário, colocando o Henrique Meirelles no BC, seguiu-se com juros altos e câmbio sobrevalorizado, só que dessa vez com algum crescimento.
O crescimento, pode-se dizer, não decorreu da política ortodoxa, mas sim da exponencial demanda por commodities chinesa, que permitiu uma forte expansão populista do consumo interno, via importações crescentes. Seguiu-se, portanto, com o paraíso financeiro dos rentistas, associadamente ao avanço da desindustrialização.
Tal processo, naturalmente, não poderia durar para sempre, e terminou tão logo a China desacelerou seu crescimento, em resposta à Grande Recessão dos subprimes. Percebendo a impossibilidade de seguir na mesma rota, o PT, com a sucessora do Lula, até tentou implantar uma “Nova Matriz”, mas o fez de maneira absurdamente açodada e atabalhoada.
Em linhas gerais, buscou baixar os juros, o que era correto, mas muito rapidamente, e de modo associado a uma série de desonerações e contenções de preços indevidas, e tudo isso potencializando ainda mais as estratégias populistas de expansão do consumo. Como era de se esperar, deu errado.
Não se pode passar anos destruindo a base produtiva e depois, em poucos meses, criar uma sobre demanda, baixando os juros e desvalorizando o câmbio aceleradamente. O resultado, mais do que óbvio, de todo esse processo, além de uma grande desorganização, foi desacelerar ainda mais o crescimento, paralelamente à aceleração da inflação.
Como seria de se esperar também, todo esse processo levou à perda de popularidade da Presidente Dilma, que assim, em lugar de tentar aprimorar sua política, optou por dar um “cavalo de pau” na economia, voltando aos juros altos e ao câmbio sobrevalorizado. Com isso, e muita marketagem, garantiu-se a reeleição, prosseguindo-se com a desindustrialização, e a desaceleração de toda a economia, no paraíso dos rentistas.
Como se sabe, a reeleição foi uma vitória de Pirro. Com o acirramento da crise, que passou a associar desaceleração a inflação crescente, a presidente, mesmo com o ortodoxo Levi à frente da Fazenda, tinha de cair, e caiu. Em seu lugar, ascende o Temer que, com o apoio de toda a elite política, econômica e também da grande mídia, traz de volta para o comando da economia o Henrique Meirelles, com toda a sua fleuma anti-inflacionária.
Num verdadeiro Déjà Vu, Meirelles, naturalmente, acirra a política contracionista do Levi, mantendo os juros absurdamente altos – e isso num mundo de taxas negativas – revalorizando mais uma vez o câmbio. Tudo isso, obviamente, tem levado à queda da inflação, mas às custas de uma queda do PIB de mais de 7,5 % nos últimos dois anos, provocando uma verdadeira explosão de falências, desemprego e violência em todo o país. Ou seja, voltando ao Simonsen, uma verdadeira eutanásia.
Até onde iremos com esse processo, difícil dizer. Mas cabe observar que, a essa altura, ele não se reverterá, em termos robustos, com a simples queda da Selic. De outro lado, cabe observar também que, com o abate dos políticos investigados na Lava-Jato, não são pequenas as chances de, em 2018, termos o Meirelles como o novo presidente do país.
(*) Marcus Alban é Engenheiro, Doutor em Economia pela USP e Professor Titular da EAUFBA.
Caro Marcus
Nós já tinhamos tido um duelo intelectual em torno de outros artigos e embora este não agregue argumentos ao seu arsenal, levanta novas questões que, digamos, me incomodam. Em primeiro lugar, você parece subestimar os resultados do Plano Real que, recorrendo à âncora cambial, conseguiu quebrar a espiral inflacionária e que recorreu a mecanismos monetários como resposta a três crises financeiras globais, principalmente a do México, que ameaçavam gravemente as contas externas do Brasil. É possível que, na época, a dosagem da redução dos juros e do câmbio tenha sido excessivamente conservadora mas os riscos de retomada da memória inflacionária em meios às crises financeiras globais ainda era muito grande. Segundo ponto que me parece ignorar na sua análise é a importância da continuidade no governo Lula da política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso (o famoso tripé câmbio flexivel, superávit primário e meta de inflação) que permitiu ao Brasil aproveitar as vantagens do comércio internacional. O crescimento econômico não decorreu da política macroeconômica mas só foi possível graças a ela que manteve os fundamentos com a maturação dos resultados estimulando a retomada de investimentos que, favorecidos pela estabilidade e liquidez global e pela forte demanda internacional de commodities. Eu entendo que a grande realização do governo Lula foi a manutenção da política macroeconômica que permitiu aproveitar o momento exuberante da economia nacional.
.
Além disso, gostaria de comentar dois mitos que considero presentes na sua análise:
1. A demonização dos “rentistas”, este grupo perverso e poderoso de pessoas que vive de renda e que convence o Banco Central a manter os juros altos para beneficiá-los. Mais uma vez você fala do “paraiso financeiro dos rentistas”. Já comentei em outro momento que este discurso contra o chamado “rentismo” é uma simplificação fácil e cômoda para encontrar um culpado pelos nossos males mais ainda quando estes são ricos e poderosos. Na verdade, apenas os pobres que nem sequer têm conta bancária para aplicação financeira não são credores do governo e não recebem remuneração dos títulos da dívida. Todos os brasileiros de classe média (eu me incluo e duvido que você não esteja incluido) que têm aplicação financeira em bancos ou em Fundos de Investimento são portadores de títulos da dívida pública e recebem juros por esta aplicação. Dos R$ 2,84 trilhões de reais da dívida pública interna (titulos), 23,7% são administrados por instituições financeiras e 20,9% por fundos de investimento, ambos funcionando como corretoras de captação de aplicadores privados (pessoas físicas ou jurídicas) em diversos papéis, com destaque para os títulos da dívida pública (dado de junho de 2016). A Previdência (aberta e fechada) também é credora, contando com 23,6% do total de títulos que funcionam como aplicação de longo prazo para garantir o pagamento de benefícios futuros dos aposentados.
2. Outro mito é este da desindustrialização da economia brasileira que estaria sendo gerado pelos juros altos e o câmbio desvalorizado. É possível que alguns fatores macroeconômicos como estes contribuam para a mudança na estrutura produtiva. Mas a redução da participação da indústria de transformação no PIB é uma tendência de longo prazo inevitável e, acrescento, positiva porque decorre do aumento significativo da participação de atividades terciárias e quaternárias que incluem serviços avançados como informática e telecomunicações. A participação da indústria de transformação no PIB do Brasil alcançou o nível mais alto em 1985, ao final da “marcha forçada” do governo Geisel, e que inicia desde então um leve mas continuado declinio relativo. Este movimento já ocorreu em todos os países desenvolvidos e o Brasil não deve escapar dele e deve mesmo comemorar desde que, claro, não seja por uma redução absoluta do Valor Agregado da indústria de transformação.
Claro que juros altos e câmbio valorizado não é bom para a economia e gera efeitos negativos no crescimento e no comércio exterior. Mas, como nada é simples e linear na economia, pode ser o custo para corrigir distorções do passado. De qualquer forma, me permita dizer que, ao contrário do que diz no seu artigo, o Banco Central (não Meirelles) já iniciou e está acelerando o processo de redução da taxa de juros Selic. Podemos questionar o ritmo mas você mesmo comenta, criticando Dilma que teria promovido (nova matriz) uma redução dos juros “de maneira absurdamente açodada e atabalhoada”. Já tinha perguntado antes e repito: qual seria o ritmo não açodado ou atabalhoado? Abraços, Sergio
Prezado Sérgio, aqui vamos nós de novo.
Sem dúvida é sempre muito bom receber os comentários e as críticas do Sérgio. Muito objetivos e precisos, eles nos obrigam refletir e explicar melhor os nossos principais argumentos. Assim, vamos a eles.
Começando pelo Plano Real, de modo algum eu subestimo o valor do mesmo. Como qualquer um que viveu a loucura inflacionária dos 80, entendo que ele foi brilhante e fundamental para virarmos a página da década perdida. O problema é que não foi bem aproveitado. Viramos a página da hiperinflação, mas não colocamos uma dinâmica de crescimento no lugar. Faltou ao nosso Príncipe da Sociologia, ousadia para ir além. De fato, em lugar de se apoiar nas ideias de figuras como José Serra e Bresser Pereira, optou-se privilegiar figuras como Pedro Malan, Gustavo Franco e Armínio Fraga que, como o próprio Sérgio reconhece, foram bem conservadores nas políticas dos juros e do câmbio.
Naturalmente, não concordo com o argumento de que o problema eram “os riscos de retomada da memória inflacionária em meio às crises financeiras globais”. Esses riscos existiam, mas tinham de ser enfrentados com crescimento, e não com políticas conservadoras. Esse é possivelmente o meu maior ponto discordância com o Sérgio. O fato é que não existe apenas um único tipo de inflação, existem inúmeros, e a maioria deles, como demonstram todos os países que nas últimas décadas nos ultrapassaram, podem e devem ser combatidos com crescimento bem dosado. É o crescimento que, com novos investimentos geradores de progresso técnico, possibilita o controle da inflação – inclusive com distribuição de renda –, via ganhos de produtividade. Sem ele ficamos na letargia dos anos FHC.
Com essa percepção, também não concordo de que foi “o famoso tripé câmbio flexível, superávit primário e meta de inflação” – realmente herdado do FHC – que permitiu ao Brasil do Lula-Meirelles crescer. O fato é que nós não crescemos pelo tripé, mas sim a revelia dele, graças as políticas populistas de distribuição de renda, sustentadas pelo dinamismo das exportações de commodities puxadas pela China. Tanto isso é verdade que, quando a China desacelerou, muito antes da dita Nova Matriz, tudo se esvaiu.
De outro lado, é preciso ter claro que o ciclo Lula-Meirelles nunca levou a nenhum “momento exuberante da economia nacional”, como supõe Sérgio. Ocorre que, ainda que apresentando taxas médias de crescimento superiores as de FHC, quando as comparamos com as taxas vivenciadas pelo próprio Brasil, no pós-guerra, ou por países como China, Índia, Chile, Peru, Bolívia, Equador, e Colômbia, dentre outros, na atualidade veremos que o crescimento Lula-Meirelles nunca teve nada de exuberante. Ao contrário, foi sempre muito pequeno e isso porque, associado a juros elevados e, consequentemente, Real sobrevalorizado, ele se deu em paralelo a nossa desindustrialização, e aqui entramos em outro ponto de discordância.
Sérgio tem razão quando diz que a desindustrialização “já ocorreu em todos os países desenvolvidos”, mas o erro está justamente aí. Uma coisa é a desindustrialização que ocorreu e ocorre nos países desenvolvidos, pela perda natural da importância relativa da indústria. Outra, completamente diferente, é o que ocorreu e continua ocorrendo com o Brasil. Simplesmente nós não somos desenvolvidos, e a desindustrialização processada aqui é a efetiva destruição de nossa indústria – inclusive a turística e a de serviços tradables em geral – que perde completamente a competitividade com o nosso Real sobrevalorizado. Assim, não por acaso, a única indústria que prosperou por aqui foi a das commodities, onde temos nítidas vantagens comparativas ricardianas, num claro processo de Doença Holandesa – para os interessados nesse ponto, recomendo, fortemente, a leitura do livro Macroeconomia Desenvolvimentista (2015), de Bresser Pereira, Oreiro e Marconi.
Naturalmente, precisamos falar agora do rentismo. Sérgio também tem razão quando diz que o rentismo não é um fenômeno apenas dos “mais ricos e poderosos”. Ele abarca simultaneamente, ainda que em menor monta, a classe média que possui excedentes financeiros e, claro, direta ou indiretamente, inclusive via sistemas previdenciários, aplica logicamente em títulos de nossa explosiva dívida pública. Mas aqui também temos um problema no raciocínio de Sérgio, isso porque, a questão não é discutir quem aplica, ou mesmo quanto aplica, mas sim por que aplica, e o que fariam se não tivessem essa opção. E o fato, mais que óbvio, é que os agentes – sejam eles ricos e poderosos ou classes médias remediadas – aplicam por que o juro real praticado pela Selic é absurdamente elevado, e com um risco, por enquanto, muitíssimo baixo. Consequentemente, é muito mais interessante aplicar em um título de nossa dívida, que com esse processo naturalmente explode, do que fazer um investimento na economia real, seja montando um pequeno negócio, seja comprando uma ação num IPO de uma grande empresa.
Como se observa, não se trata de “demonizar rentistas”, mas sim de admitir que somos mesmo o paraíso do rentismo. E isso, é claro, com os atuais níveis das taxas de juros, joga o nosso custo de oportunidade do capital lá em cima, o que também por aí, além de sobrevalorizar Real, inviabiliza quase qualquer investimento na economia e real, e explica, certamente, a absurda recessão – se é que já não é depressão – em que estamos metidos.
Por fim, chegando a última provocação, é preciso observar que ainda estamos longe de ter Meirelles, e seu fiel escudeiro Ilan, acelerando a redução dos juros, como supõe Sérgio. Isso porque, como em razão da recessão a inflação vem caindo drasticamente, o juro real, que é o que interessa, na verdade vem aumentando. Assim, o máximo que podemos dizer é que, apenas recentemente, a depender de como se meça a inflação, atingiu-se uma certa estabilidade do juro real. Vamos ver então o que acontece a partir de agora.
Como disse no artigo, difícil dizer o que vem agora, e muito mais difícil propor em que velocidade devemos reduzir a Selic. Certamente será necessária uma velocidade em que implique numa efetiva redução, não açodada, dos juros reais. Mas como também observei no artigo, já chegamos a um nível tal de degradação econômica e social, que apenas isso, seja a velocidade que for, independentemente das reformas em curso, já não será suficiente para retomarmos o crescimento robusto da economia. O se seja, se quisermos superar a crise gerando empregos de fato, será preciso fazer mito mais.
Naturalmente, a visão de Sérgio, a julgar por nossos embates, sobretudo o anterior quando divergimos sobre a proposta de ajuste fiscal do Meirelles, deve ser bem distinta, e eu, é claro, estou muito curioso por conhece-la.
Abraços, Marcus
Marcus
Vamos deixar para nossos eventuais leitores tirarem as suas próprias conclusões das nossas divergências e convergências. Preciso apenas fazer uma retificação do meu texto que permitiu um entendimento errado: nunca quis dizer que o Brasil teve um momento de exuberância na economia. Quando eu digo que a “grande realização do governo Lula foi a manutenção da política macroeconômica que permitiu aproveitar o momento exuberante da economia nacional” é evidente, pelo sentido, que estava falando da exuberância da economia internacional nos primeiros anos do século XXI, que se esgota em 2008. Tenho dito sempre que, mesmo nestas condições, a economia brasileira teve, no governo Lula um crescimento medíocre,apenas um pouco acima da média das décadas anteriores. O “milagre” econômico de Lula decorre da combinação deste crescimento medíocre com um muito baixo crescimento da população e da população em idade ativa e, mais ainda, da redução significativa do tamanho médio das famílias que favoreceu um crescimento razoável da renda média familiar per capita. Sergio
Sérgio,
Plenamente de acordo com a posição de que o crescimento, no Governo Lula, foi apenas medíocre, e também com o deixarmos a conclusão final para os leitores.
Marcus