As conjunturas mudam, mas os bolsões culturais de resistência às mudanças teimam em permanecer, independentemente da realidade, que sempre faz cobranças sobre os passivos que as conjunturas anteriores não conseguiram sanar. A Legislação Trabalhista e Sindical no Brasil entranhou um passivo que virou virtude na mente de interessados em manter privilégios, e mesmo dos mais pobres, que se sentem protegidos sem uma análise maior da real natureza dessa proteção. De tempos em tempos, particularmente em momentos de grande inflexão na economia e na política, o tema emerge e é subsumido pela lógica das conveniências imediatas. Promulgado em 1943, sob a égide da ditadura do Estado Novo, o estatuto trabalhista recebeu algum aperfeiçoamento ao longo da história, mas manteve o arcabouço do corporativismo, marca do domínio do Estado sobre a estrutura sindical, e da longevidade das direções no controle das máquinas administrativas.
Após o golpe militar de 64, a esquerda remanescente passou a discutir, em pequenos ciclos, a fragilidade do movimento sindical na resistência ao Golpe Militar, em razão do atrelamento das direções sindicais ao Estado. A crítica principal era que as direções sindicais de esquerda não organizavam os trabalhadores pela base porque haviam passado a funcionar como apêndices dos governos que aceitavam alianças com a esquerda, mesmo de caráter limitado. Essa crítica, muito dirigida ao velho PCB, ganhou as Universidades e deu como resultado inúmeras teses acadêmicas, além da formação de novas organizações de esquerda.
Os governos militares realizaram inúmeras intervenções nos sindicatos, deixando, entretanto, intactas as estruturas e os mecanismos de reprodução de suas direções. No início dos anos 80 começou a ficar claro que as críticas ultrapassavam a academia ou os grupos de esquerda, para ganhar o chão das fábricas. Parecia que estava sendo gestado um novo sindicalismo no Brasil, embora a antiga representação sindical, filha da velha CLT , ainda permanecesse como tendência dominante. Foi nesse momento de grande ebulição na vida do país que cinco instituições de pesquisas[1] se uniram para entenderem que possibilidades de mudanças efetivas na CLT poderiam ser apresentadas pelas lideranças emergentes, e qual o grau de compreensão ou de resistência às mudanças que ainda vigorava entre as lideranças tradicionais. A pauta para as mudanças discutidas passava pela Lei de greve, pela organização dos trabalhadores pela base, pela constituição de comissões de fábrica, pela autonomia sindical, unicidade ou pluralidade sindical, contribuição sindical obrigatória e outros pontos centrais que faziam parte do universo da legislação trabalhista e sindical. De um extenso relatório de 813 páginas, foi publicado pela editora Vozes um livro bem resumido, com o título “Sindicatos em uma Época de Crise” (1984).
Na apresentação dos resultados do extenso trabalho de pesquisa o sociólogo Regis Andrade, coordenador da Pesquisa[2], resume, de, forma muito precisa, a então ambiguidade do mundo sindical, considerando tanto as tendências emergentes quanto as tradicionais. Afirma Regis: “ O desejo de autonomia é acompanhado de um certo temor de orfandade: autonomia sim, e unidade, dizem, mas desde que se mantenha o sindicato único por categoria. Preferem que o Estado continue determinando quantos sindicatos devem existir, como se a obrigatoriedade do sindicato único garantisse ou promovesse indubitavelmente a unidade política. Admitem que a força do sindicato provém de ampla participação consciente de suas bases, mas relutam em rejeitar mecanismos que, em sua própria opinião, reduzem a representatividade dos sindicatos, como a Contribuição Sindical Obrigatória (“Andrade Regis – “Sindicatos em uma época de Crise “ Vozes 1984-p.10). Na verdade, mesmo com certa clareza conceitual dos reais objetivos dos sindicatos, não se verificava uma decisão clara e objetiva sobre como realizá-los.
O sugestivo título do livro poderia ser replicado três décadas depois, muito embora as discussões da época fossem muito mais ricas e estimulantes. É incrível como perdemos em substância, comparando-se com o período de sonho que dominava na transição democrática. Assim, a ambuiguidade registrada por Regis vai se transformando em quase uma unanimidade conservadora, na medida em que as oposições sindicais assumem a direção das principais entidades sindicais do Brasil, e muitas delas assumem também o poder político. No poder, realimentam a velha CLT e as teses de oposição, que se transformam em antíteses, em razão de nenhuma mudança estruturadora ter sido implementada, no sentido da modernização das relações trabalhistas. Ao contrário, inflaram o famigerado imposto obrigatório, que garante sindicatos sem sindicalizados, para o gáudio das Centrais que proliferaram no Brasil, depois que a então oposição sindical chegou ao poder.
Considerando as respostas dos sindicalistas nessa ampla pesquisa realizada no período da transição democrática, já se notava claramente a distância entre a retórica do discurso e o desejo efetivo de realizar. Indagados sobre a visão geral a respeito da legislação trabalhista, 67% dos integrantes da amostra responderam que a legislação devia ser profundamente reformada. Essa convicção majoritária sobre a necessidade da reforma não segue a mesma tendência, quando se pergunta sobre quais os pontos específicos a serem reformados. No detalhamento, as repostas são mais diluídas, não correspondendo a uma maioria expressiva para nenhuma proposta. Supreendentemente, a contribuição sindical obrigatória foi o instituto que mais recebeu menção de mudança (50.3) A metade da amostra se mostrava disposta a discutir mudanças no Imposto Sindical. Já o Sindicato único por categoria era quase uma unanimidade na então oposição sindical: 87% da amostra manifestava sua preferência pelo sindicato único por categoria, em cada base territorial. Na questão relativa à negociação direta ente empregadores e trabalhadores, já havia um discurso ligeiramente majoritário (55,4), que considerava que a negociação trabalhista deveria ocorrer sem nenhuma interferência do Governo.
Essa é uma questão que se apresenta com fundamental na atual proposta de Reforma Trabalhista. Cabe lembrar que a pesquisa que resumo nesse artigo foi feita nos quarenta anos da CLT, e que, da publicação do resultado da enquete até hoje, já se vão trinta e três anos. Porém, em geral, a agenda continua quase a mesma. A negociação direta, por exemplo, é pedra angular da Reforma ora em votação no Congresso. Em boa parte dos países de democracia avançada, é o estabelecimento de negociações coletivas diretas entre o patronato e os trabalhadores que contribuiu para qualificar o padrão de civilidade da sociedade. No entanto, com o adverte o Professor Celso Rocha, em artigo na Folha de São Paulo do dia 01 de maio último, o padrão de flexibilização previsto exige, de lado, um sindicalismo forte, capaz de negociar responsavelmente em nível nacional, e, de outro, um patronato disposto a aceitar uma conduta de negociação capaz de ir sanando a imoral distribuição de renda do Brasil.
*Sociólogo- Participou pelo Centro Josué de Castro da pesquisa Estrutura e Representação Sindical- 1981/1984
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[1]– Pesquisa Nacional sobre a “Estrutura e Representação Sindical- coordenada pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e integrada pelo Centro de Estudos e Pesquisa Josué de Castro, pelo Instituto Latino Americano de Desenvolvimento Social (Ildes), do Rio de Janeiro, pelo Centro de Pesquisas do Trabalho (CEPET) da Universidade Federal de Minas Gerais e pelo grupo de estudos sindicais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[2] A pesquisa que teve o trabalho de Campo, realizado entre fevereiro e junho de 1981, foi coordenada incialmente pelo Professor Francisco Weefort e depois pelos professores José Álvaro Moisés e Regis de Andrade, os três da USP e do CEDEC.
A esse respeito, recomendo o brilhante artigo “Os conservadores” do professor Jorge Jatobá, publicado no “Jornal do Commercio”, em 11 de maio do corrente.