Flávio Carvalho

Trabalho em Barcelona (moro há 12 anos na Catalunha) e estive com meus filhos, dois dias antes do atentado, em Las Ramblas, local do atentado terrorista. A cidade está com mais turistas do que normalmente. E naquele burburinho das Ramblas em plenas férias, fizemos algo impensável para a maioria de nós, moradores: a típica foto sobre a pintura de Miró, na calçada, em frente ao Mercado da Boqueria – eleito por uma associação de mercados públicos mundiais como o melhor de todos.

Logo depois, fiz uma viagem de urgência para Olinda, a fim de acompanhar de perto o grave estado de saúde do meu pai, na UTI. Nestes momentos, tendemos a pensar que fomos salvos: eu, pelo meu pai. Isso porque, justamente para aqueles dias próximos, justamente quando houve o atentado, havia programado um curso para ministrar em local bem perto das Ramblas. Seria sobre formas de ajuda aos brasileiros recém-chegados na cidade, seus direitos e deveres.

Coincidentemente, o curso estava programado para as 17 horas daquele fatídico 17 de agosto, na mesma hora do atentado, na sala de uma ONG, que gentilmente nos cedeu o espaço.

Todos que lá moramos, não deixamos de pensar o quanto poderíamos, cada um de nós, haver cumprido o ritual de passear pelas Ramblas, num caloroso dia típico de férias de verão europeu.  Nesses dias ensolarados, a cidade também é nossa, e às vezes, até nos vemos reclamando, com certa indignação, dos turistas. Principalmente porque os moradores do centro turístico estão sendo expulsos pelo processo de gentrificação[1] intenso (quando os interesses imobiliários dos grandes grupos inversores se sobrepõem ao direito de moradia da maioria dos cidadãos), pela especulação imobiliária de sempre e cada vez maior.

Porém, ao mesmo tempo, todos sabemos que Barcelona estava recebendo os turistas que evitavam os destinos mais visados por já terem sido atacados pelo terror: Paris, Londres, Bruxelas, etc.

Desde que vim morar em Barcelona, sempre trabalhei com o tema “viagem”. Primeiramente, viagem por migração de trabalho, como foi a minha própria (também por amor, pois vim para cá casado com uma catalã), atuando em organizações de apoio aos imigrantes. E depois, sem abandonar a “militância”, trabalhando no Consulado Brasileiro. Duas pernas do mesmo corpo: apoio aos brasileiros em Barcelona.

Lamento fazer agora alguns prognósticos pessimistas para a cidade, justamente em um momento muito oportuno para toda a Catalunha, às vésperas do referendo que poderá mudar nossas vidas. Não se sabe ainda em que direção, mas se sente fortíssima, nas ruas da Catalunha, a oportunidade da mudança. A Espanha não tem sido capaz de sair da “monocultura” do turismo barato, pagando salários miseráveis aos imigrantes que ocupam os piores postos de trabalho. E em Barcelona, a prefeita Ada Colau, tanto antes como principalmente depois de eleita, tem enfrentado os grandes grupos hoteleiros em um combate corajoso à especulação imobiliária dos últimos anos.

Quem pagará novamente esse pato? Os imigrantes. Incluindo as dezenas (ou centenas) de brasileiros que chegam cada dia. Posso afirmar isso porque trabalho cotidianamente com os brasileiros imigrantes da Catalunha, voluntariamente mais que profissionalmente. Brasileiros que “fogem” do Brasil. Aumentarão os controles migratórios sobre todos aqueles que não são europeus. Aumentará ainda mais a desconfiança generalizada e burra contra os imigrantes, a xenofobia, assim como já está acontecendo em toda a velha Europa. E não é verdade que a Espanha estivesse longe disso. Porém agora será pior. Todos os brasileiros em situação irregular (não são poucos), estarão infelizmente mais sujeitos a serem parados a qualquer momento para serem investigados pela polícia. Evidentemente de forma discriminatória. Prefiro, portanto, ser mais realista e começar a alertar o nosso país, ativando políticas públicas de mais proteção dos direitos dos brasileiros migrantes em situações como esta.

Por haver assinado e ajudado a liderar, recentemente, um manifesto a favor do referendo na Catalunha (explicaria minhas razoes, se dispusesse de mais espaço), até mesmo como uma oportunidade de construir uma nova política migratória naquele “pequeno país”, a Catalunha, conhecido historicamente e ironicamente como um dos mais importantes territórios de acolhida de toda a Europa. Um único dado exemplar: na mesma medida em que a direita espanhola que governa o Reino tira a saúde pública para os imigrantes irregulares e os prende em presídios disfarçados de Centros de Internamento, a Catalunha enfrenta as leis espanholas criando uma legislação própria, para garantir o direito à saúde a todos. E a Prefeitura de Barcelona concede documentos de integração aos indocumentados, porque se estiverem “sin papeles” (sem nenhum documento), poderão ser presos ou expulsos a qualquer momento, por mais que tenham no país família ou algum trabalho informal.

Lamentável, portanto, tudo o que está acontecendo e o que ainda poderá vir a acontecer. Na Catalunha, estávamos acostumados a sobreviver em um nível 4 de alerta terrorista. Haveremos, por força das circunstâncias, de viver, de agora em diante, no nível máximo, 5. A migração brasileira não cessará, pois os nossos imigrantes já conhecem em nosso país a sensação terrível de termos que nos “acostumar” em viver na insegurança das ruas. Em que nível a classificaríamos? Para dizer o mínimo, um clima de guerra nas ruas.

Barcelona não merece. A Catalunha e o Brasil não merecem. Atuemos. E sejamos ainda mais solidários. E isso porque eu nem entrei no assunto dos refugiados na Europa…

Flávio Carvalho é sociólogo.

PS: Tomei a liberdade de encaminhar esse artigo que Flávio Carvalho me encaminhou pensando em divulga-lo nos meios de comunicação a que tem acesso. Conheci Flávio lá se vão anos, ao tempo em que escrevia sobre brasileiros imigrantes. Nessa época, eu já havia publicado o primeiro livro no Brasil sobre o assunto, Brasileiros longe de casa. Estávamos em um Congresso promovido pelo governo brasileiro no Itamaraty, no Rio de Janeiro. Eu, levando um texto e participando dos debates na primeira Mesa. Flávio, representando sua ONG de Barcelona. Anos depois, convidou-me para fazer a abertura de um Encontro das lideranças de todas as organizações de brasileiros imigrantes na Europa. Flávio é uma das pessoas que conheci com maior capacidade de liderança. Esse reconhecimento foi sacramentado no Encontro de Barcelona, quando ele recebeu, de parte do Governo Brasileiro através do representante do Itamaraty, a honrosa comenda Rio Branco. Seu artigo tem o sabor e a pouca ortodoxia de quem escreve no meio da luta.

Recife, 22 de agosto de 2017

Teresa Sales

[1] Chama-se gentrificação (do inglês gentrification) o fenômeno que afeta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local.